Meu Amigo Didu
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"Meu amigo Didu"
Sergio Valério
Capítulo 1 – O encontro
Eram dez da noite e eu ainda estava trabalhando. Todos já haviam ido embora, com exceção do segurança da empresa e deste cara aqui que teimava em tentar responder todos os trezentos emails recebidos durante o dia.
Enquanto eu respondia um email para o Dudu, da Contabilidade, eu pensei ter ouvido um ruído no longo corredor que ficava ao lado da minha sala. Levantei-me, um pouco preocupado, pois o Valdemar, o segurança de plantão era meio distraído e, de repente, poderia ter entrado alguém, sei lá...
Olhei pelo corredor e não vi nenhum sinal, voltei para a tela e comecei a escrever para o rapaz da Contabilidade e foi aí que eu levei o maior susto! Sentado ao meu lado estava nada mais, nada menos do que um cão!
O cachorro não tinha nada de assustador, tinha cara de cão bonzinho, daqueles vira-latas que a gente sempre simpatiza quando vê pelas ruas.
O cão estava sentado me olhando com aquela cara de quem está querendo fazer amizade. Foi aí que eu disse:
-Amigão, o que é que você está fazendo aí, hein? O Valdemar está cada vez mais desligado, não é mesmo? De onde você veio, hein? Ahnn... Você não sabe falar, ainda não aprendeu, certo? Então, vamos lá, vou tentar adivinhar...
Você estava com fome, começou a andar por aí procurando comida, sentiu o cheirinho deste sanduíche que eu pedi e, por falar nisso, nem comi ainda. Foi isso?
É... Deve ser dura essa vida de cão! Ficar andando por aí, sem ter o que comer... Vamos fazer o seguinte. Que não me vejam fazendo isso os veterinários, mas eu vou dividir o meu sanduíche com você. Que tal? Se você tiver a sorte de um dia ser adotado por uma boa família, vai ter ração, tudo direitinho, mas enquanto isso não acontece, vamos dividir este sanduíche, ok?
Bem, deixe-me cortar aqui no meio. Opa! Uma parte saiu maior... Tá bom... Você está me olhando com essa cara... Ok! Eu vou te dar a maior parte... Toma... Vou colocar este papel no chão e o sanduíche em cima... Pronto! Pode comer!
Passaram-se alguns segundos e nada do cão comer o sanduíche, aliás, nem aproximar o focinho perto para cheirar...
Enquanto esperava o cachorro comer o sanduíche, olhei para a tela e vi que tinha escrito errado o nome do cara da contabilidade, ao invés de Dudu, escrevi Didu!
Voltei o meu olhar para o cão e falei: - Opa! Já sei que nome vou dar a você, afinal de contas já estamos conversando há alguns minutos e não fomos apresentados! Estiquei a mão, pegando a pata do cão e falei: Muito prazer, eu sou o Roberto Cláudio e você... você é o Didu!
Exatamente neste momento percebi que o meu novo amigo Didu nem havia dado bola para o sanduíche. Olhei para o cão e disse: Ué? Você não está com fome? E água, você quer?
Levantei-me e procurei pela sala algo que poderia servir para o Didu tomar a sua aguinha. Abri o armário e encontrei o prato que o Adilson usava para o seu almoço, olhei para Didu, olhei para o prato, pensei comigo mesmo e não tive dúvidas. O Adilson vai me desculpar, mas é por uma boa causa...
Coloquei o prato no chão, peguei a minha tradicional garrafa de água e coloquei um pouco no prato e falei:
Está aí, amigão! A água você não vai recusar, certo? Afinal de contas, como a minha professora de biologia, a querida Dona Alzira já dizia, o corpo humano é feito mais de água do que de outra coisa, se é assim com a gente, com os cães deve ser a mesma coisa, por isso, está aí a água, fique à vontade...
Didu nem olhou para o prato, só ficou me olhando...
Desisti de oferecer qualquer outra coisa e continuei a responder os meus emails. Didu deitou-se perto dos meus pés e ali ficou.
O tempo foi passando e lá pelas onze da noite, eu não aguentava mais nada, espreguicei e disse em voz alta:
-Chega! Amanhã tem mais... Foi aí que eu notei que o Didu não estava mais ali. Pensei comigo mesmo: Vai ver que ele é de uma casa vizinha e resolveu voltar para o seu dono.
Peguei a minha bolsa, desci as escadas, marquei o ponto, dei boa noite para o Valdemar que assistia na tevê a um jogo sei lá de quem contra quem.
Fui andando pela calçada pensando: Como é que o Valdemar não viu o cão, quero dizer, o Didu passar pela portaria?
Capítulo 2 – O chefe
No dia seguinte, cheguei à fábrica, cumprimentei o pessoal da portaria, tomei um café da máquina que ficava no térreo e fui para a minha sala. Dei bom dia pra todos e mergulhei no computador que com certeza já teria mais uns cento e cinquenta emails para responder, além dos duzentos e tantos spams.
Foi aí que eu me lembrei que não tinha guardado o prato do Adilson e o prato estava no mesmo lugar com a água que o Didu não havia bebido!
Como o prato havia ficado embaixo da mesa, os colegas de trabalho não haviam notado, a equipe de limpeza ainda não devia ter passado pela sala, disfarcei e me abaixei como se fosse amarrar o cordão do tênis, peguei o prato, joguei a água na lata de lixo que estava com saco plástico, coloquei o prato embaixo da minha blusa.
Dei um tempo, fiz de conta que ia pegar algo no armário e... Ufa! Consegui colocar o prato no lugar que o Adilson costumava deixar, pensando comigo mesmo: - Se o Adilson não lavar o prato, não tem importância, pois o Didu nem tocou na água!
O dia passou depressa, afinal de contas, era tanta coisa para ser feita que nem deu tempo de pensar no Didu, mas quando todos já estavam indo embora, senti um toque na minha perna. Opa! Olhei para baixo e vi o cão deitado aos meus pés. Olhei para ele com aquele olhar que dizia: Amigão, o que é que você está fazendo? Se o chefe vir você aqui, vai ficar muito bravo, afinal de contas, vai dizer: - Hoje é um cão, amanhã vai ser uma tartaruga, depois de amanhã, um lagarto e quem sabe um dia um elefante bem no meio do corredor!
Os outros funcionários do meu setor foram saindo e eu torcendo para que nenhum deles visse o Didu, senão ia virar uma festa e alguém poderia pensar que eu estava trazendo o meu cão para o trabalho! Aliás, isso em alguns países já está sendo feito, pois um dia por ano os empregados podem trazer o seu bicho de estimação para o trabalho. É uma idéia muito legal, não é mesmo? Mas, como aqui ainda é assim, tratei de disfarçar para esconder o Didu embaixo da minha mesa.
Quando eu pensei que todos já haviam ido embora, de repente, do nada, apareceu o Magalhães, o meu chefe! Rapidamente coloquei as minhas pernas na frente de onde estava Didu e falei: - Agora o Atlético vai, não é mesmo, chefe? Com a contratação daquele atacante, ninguém vai segurar o seu time...
As sobrancelhas de Magalhães pareciam se mexer quando ele estava bravo, por isso até fiquei mais tranquilo, pois elas estavam calminhas, paradas em cima dos seus olhos, mas ele ficou sério e disse:
-O que é que você está escondendo aí debaixo da mesa, Roberto Cláudio?
Um frio subiu até a cabeça e tive que virar as minhas pernas para que ele visse Didu...
Magalhães olhou firme para onde estava Didu e disse: - Ué, não tem nada?!!! Você parecia que estava escondendo algo, pois tinha ficado todo retorcido quando eu entrei na sala? Você está bem, Roberto Cláudio? Está pálido! Amanhã vou pedir para o RH agendar uma consulta com o nosso médico, afinal de contas, quero todo mundo em forma, pois precisamos produzir!!! Temos uma encomenda de vinte mil pares de sapatos para enviar para a China e não quero ninguém de corpo mole ou doente, certo?
Balancei a cabeça afirmativamente e o Magalhães completou:
-De que adianta a presidenta fechar tantos negócios na China se não tivermos produção? Estou de olho em você, Roberto Cláudio!
Enquanto o chefe saía da sala, eu olhava para o Didu sem entender nada... Didu balançou a cabeça e pareceu até sorrir.
Eu não acreditei, mas o Magalhães não viu o Didu que estava bem em sua frente! Será que ele precisava de novos óculos? Aliás, estavam acontecendo tantas coisas na fábrica e ele parecia não ver mesmo nada...
Apaguei as luzes e saí a mil por hora, sem nem mesmo marcar o ponto.
Na calçada, olhei para trás e tive quase certeza de ter visto Didu lá em cima, na janela do escritório, balançando o rabo...
Capítulo 3 – Gilda
A manhã havia se arrastado porque o provedor estava lento demais e eu não conseguira atender os mais de cento e oitenta novos pedidos. Olhei para o relógio e vi: Meio-dia em ponto! Falei para mim mesmo: Quer saber? Eu vou almoçar pela primeira vez na hora certa. Dei um até logo pra todos e saí pelo corredor em direção ao relógio do ponto. Do nada, Didu surgiu ao meu lado. Eu fiquei desesperado, desta vez todos iriam ver o cão. Ele parecia tranquilo e seguia ao meu lado balançando o seu rabo. Passei pela sala do chefe, ele disse:
-Roberto Cláudio, o nosso representante em Pequim me telefonou dizendo que você ainda não respondeu ao seu pedido de duzentos mil pares de sapatos! O que é que está acontecendo?
Sem saber se ficava mais preocupado com a resposta ou com o fato de Didu estar sentado bem ao meu lado, escutando o Magalhães, sorri amarelo e disse simplesmente: - Fique tranquilo, chefe! Depois do almoço, o Ching vai receber a minha confirmação...
Olhei para o chefe, olhei para Didu e parecia que o Magalhães estava tão preocupado com o pedido dos chineses que não tinha notado o cão... Acenei meio sem graça para o chefe e saí, descendo as escadas.
Lá pelo terceiro degrau encontrei a Gilda que me olhou com aquele olhar de reprovação. Gelei e pensei comigo: - Ela viu o Didu e vai me dedar para o Magalhães...
Dei bom dia e ela me disse: - Sabe aquele email que você me mandou? Não vai ficar assim! Quem você pensa que é? Só porque trabalha no Departamento de Vendas acha que pode destratar os outros? Espere que vai ter o troco..
Não acreditei! A Gilda também não havia visto o Didu!!!
Passei pela portaria e cruzei com o Deco, a Cristina, o Fred, a Vanessa e ninguém parecia enxergar o Didu...
Já na calçada, eu caminhava olhando para onde olhavam as pessoas e esticando o olho para onde estava Didu. Ninguém o via!!! Parei, de repente e disse olhando para o cão:
-Qual é, hein? Será que você é só uma miragem? Passei a mão na cabeça do cão e ele era de verdade! Assustado com a situação segui em frente em direção ao restaurante, enquanto Didu continuava ao meu lado, caminhando e balançando o seu rabo.
Capítulo 4 – O restaurante e a criança
O restaurante estava logo ali em frente e na porta estava escrito: Proibida a entrada de animais! O dono do restaurante era um cara mal humorado e continuávamos indo lá porque a comida era muito boa.
Olhei para Didu e disse: Bem, amigão, jamais concordei com essa proibição e agora vamos tirar a prova dos nove. Se ninguém consegue enxergar você, vai ser a hora de quebrar esta regra boba que o Tito inventou.
Abri a porta, deixei o Didu passar e fui em frente em direção a mesa que ficava bem perto do caixa. O Tito estava ali passando o cartão de uma moça e, como sempre, nem olhava na cara dos fregueses.
Comecei a gostar da história de ninguém ver o Didu e falei: - Amigão, faz o seguinte. Vai até onde está o Tito, aquele homem de bigodes e fica parado bem ao lado dele, certo?
Didu seguiu até onde o homem estava e ficou em pé, ao lado do dono do restaurante. Não aguentei... Comecei a rir de uma maneira tão descontrolada que o restaurante todo começou a olhar par mim... O Tito percebeu que eu estava rindo, olhando para ele e começou a olhar para a sua roupa para ver se alguma coisa estava errada...
A garçonete chegou com o cardápio e eu, tentando me controlar para parar de rir, chamei o Didu de volta e o cão pulou na cadeira que ficava em frente da minha mesa e, com a língua para fora, ficou me olhando enquanto eu pedia um bife com batatas fritas.
Olhei para Didu e falei: - E aí, amigão? Quer comer alguma coisa ou vai ser igual aquela noite que eu te ofereci metade do sanduíche e você não quis? Didu pareceu até sorrir e balançou a cabeça, como se quisesse dizer: Não, obrigado!
Almocei, paguei a conta com o Tito me olhando pelo rabo do olho, enquanto o Didu também balançava o seu rabo, como era o seu costume.
Caminhamos em direção da fábrica e a sensação que eu tinha era muito especial, eu me lembrava de quando era criança, tinha inventado um amigo invisível e meus pais haviam ficado até preocupados comigo. Pensei: - Será que eu estou regredindo no tempo ou no meu emocional? Inventei este cão só porque tenho me sentido muito só depois de terminar com a Ana?
Ela era uma pessoa muito especial e eu, com essa minha mania de trabalhar tanto sempre acabo me afastando das pessoas que gosto.
Os pensamentos foram, de repente, cortados por uma cena desesperadora! Uma mãe que conversava com uma amiga, não percebeu que o carrinho do seu bebê que ela empurrava para frente iria ser atropelado por um carro que descia a rua correndo a uma velocidade muito superior à permitida. A mãe não havia percebido a vinda do carro e em segundos o desastre aconteceria!
Didu pareceu voar em direção à cena e com força puxou a perna da mulher que, assustada, viu o carro e puxou o carrinho do bebê! O carro passou, a mulher chorando tirou o bebê do carrinho, o abraçou e todos na rua pararam para ver o que estava acontecendo.
Olhei para Didu, olhei para a mulher e ela olhava para baixo, bem onde estava o cão e parecia também não o ver, apenas havia sentido aquele puxão que salvara a sua criança.
O sol estava quente demais e Didu voltou para perto de mim. Agachei-me, passei a mão em sua cabeça e dos meus olhos saíram algumas lágrimas que se misturaram com o suor que também caía.
Voltamos os dois para a fábrica em silêncio. Não era preciso dizer nada, pois estávamos dividindo uma emoção muito grande, impossível de ser descrita em palavras ou latidos.
Capítulo 5 – No ônibus
As luzes da cidade já estavam acesas quando, na hora de voltar para o meu apartamento, me despedi de Didu. Ele seguiu pelo longo corredor, foi descendo as escadas até desaparecer dos meus olhos.
Marquei o ponto de saída da fábrica, dei boa-noite ao Valdemar que estava novamente em seu plantão e fui em direção ao ponto de ônibus. Subi e fiquei olhando as pessoas.
Aquela moça de vestido claro parecia triste, será que se ela tivesse um cão se sentiria melhor? Cão tem este poder de se tornarem amigos muito especiais, eu mesmo me lembrava de Tudor, um cão da raça pastor alemão que foi o meu grande amigo durante muito tempo.
Eu brincava de jogar bola com o Tudor pelo cimento do quintal de casa e parecia que tínhamos tanto em comum que não havia necessidade nem de conversarmos sobre nada, apenas brincávamos e depois, cansados, nos estirávamos no quintal, olhando a lua que parecia ficar olhando para nós, tranquila pela nossa felicidade.
Lembrei-me do poodle de minha mãe que adorava jogar bola comigo. Ele parecia não querer que eu pegasse a bola, mas quando depois de correr atrás de mim para apanhá-la, sentava-se em sua caminha e, de repente, deixava a bola escorregar até chegar perto de mim, para começarmos tudo de novo.
Cão tem o poder de nos devolver a infância e nos fazem mais leves, mais sensíveis, transformando as nossas vidas em existências melhores, onde a imaginação e a alegria substituem as preocupações, a inveja e o orgulho.
Olhei pela janela e vi cães mexendo em sacos de lixo, lembrei-me de Didu e me perguntei:
- Quem seria Didu? Um cão que as pessoas não conseguem enxergar e que eu, sei lá porque razão posso ver? Seria apenas a imaginação dos meus tempos de criança retornando para me devolver um amigo perdido no tempo que não mais encontrei ou seria a loucura que, aos poucos, invadia a minha mente?
A imagem dos cães desapareceu quando o ônibus virou a esquina e a pergunta permaneceu forte em meus pensamentos: - Didu existiria mesmo? Quem era esse cão que nada queria comer, nada queria beber e que salvara neste dia uma criança de um atropelamento, possibilitando que a sua mãe pudesse continuar a tê-la em sua vida? Quem seria esse Didu?
Capítulo 6 – O botão de emergência
O trânsito estava terrível nesta sexta-feira e parecia que eu jamais conseguiria chegar à fábrica. Cá com os meus botões, eu já imaginava o Magalhães passando de minuto em minuto em frente da minha sala, esperando que eu chegasse para me dar mais uma chamada de atenção pelo atraso...
O ônibus parou no ponto, desci rapidamente e depois de umas quadras, consegui chegar ao trabalho.
Um alvoroço enorme estava em frente da fábrica, uma ambulância acabava de sair, apontando que alguém havia passado mal.
Subi as escadas correndo, passei entre tantas pessoas que se acotovelavam na portaria, em um zum-zum-zum ensurdecedor.
Gilda estava do lado de dentro da portaria. Perguntei para ela o que tinha acontecido e Gilda, contrariada por ter que falar comigo, respondeu:
-Ninguém sabe direito o que aconteceu, o fato é que alguém tocou o alarme e os vizinhos chamaram a polícia que ao encontrarem a porta fechada e o alarme tocando, arrobaram a porta, entraram, encontraram o Valdemar caído no andar de baixo, lá perto do almoxarifado e chamaram a ambulância. Ele teve um enfarte e o curioso é que se ele passou mal e caiu lá embaixo no andar inferior, quem é que tocou a campainha do alarme aqui na portaria?
A fábrica mantinha apenas um segurança durante a noite e eu já imaginava quem tinha tocado o alarme. Subi as escadas e encontrei Didu sentado ao lado de minha mesa. As pessoas conversavam sobre o acidente e ninguém notava a presença do cão.
Sentei-me, passei a mão sobre a cabeça de Didu que me pareceu, outra vez, sorrir. Lembrei-me de uma foto em um restaurante no centro da cidade que estampava em seu logo a imagem de um gato rindo e de como esta foto despertou curiosidade na época. As pessoas diziam: Mas, como? Um gato pode rir? O tempo foi passando, o restaurante mudou a sua fachada, mas a imagem do gato rindo ficou firme em minha mente e ao ver Didu, tive a certeza:
-Gatos riem, cachorros riem, nós é que em muitas das vezes, não enxergamos o sorriso que eles nos oferecem.
Temos a mania de achar que apenas nós, humanos, somos capazes de pensar, refletir, sorrir, chorar e esquecemos que os animais podem ser muito mais sensíveis que nós somos, porque dentro deles talvez não exista espaço para tantas coisas bobas e irrelevantes que nós insistimos em colocar como nossos objetivos de vida.
Capítulo 7 – Amanda
Depois do almoço, as preocupações com o estado de saúde do Valdemar se acalmaram, pois veio do hospital a notícia de que ele passava bem.
Magalhães, refeito do susto, já havia me chamado três vezes em sua sala para reclamar dos retornos que eu não havia dado ao Ching, o nosso representante de vendas na China que me cobrava o fato do lote de calçados ainda não ter chegado ao destino.
Expliquei por três vezes que era uma questão do transporte e que eu havia checado na empresa aérea, confirmando que era apenas questão de horas para que os chineses pudessem ter os calçados brasileiros de nossa fábrica para pisar firme em suas vidas...
Magalhães não acreditou muito, tanto é que me chamou mais uma vez ainda para me cobrar um posicionamento. Quando eu saía da sala do chefe, encontrei Amanda que parecia ter chorado muito.
Parei ao lado dela que pegava um copo de plástico para tomar água. Perguntei: - O que é que foi, Amanda? O Valdemar já está melhor, pode se acalmar...
Ela me olhou e disse: - Eu sei, que bom... É que eu também estou preocupada com o meu marido, ele fará exames na semana que vem e há suspeita de que tenha uma doença incurável.
Naquele momento, eu ia apenas dizer qualquer frase feita, para acalmá-la, mas foi aí que eu vi Didu, parado atrás dela, me olhando, como se me dissesse: - O que é que há? Vai fazer apenas o básico? Dizer apenas algumas palavras soltas no vento e voltar para a sua sala? Faça mais! Converse com ela, seja mais útil e não apenas mais um colega de trabalho...
A primeira vontade foi contradizer Didu, falar qualquer coisa para Amanda e voltar para a minha sala, para responder os meus emails, mas o olhar de Didu me convenceu.
Falei por uns dois minutos com Amanda, dizendo coisas que pareciam não sair de dentro de mim e sim palavras que vinham sei lá de onde e que pareciam confortar Amanda. Eu disse coisas que jamais havia pensado antes, frases de uma sabedoria que eu não possuía e que pareciam vindas sei lá de onde.
Nos olhos de Amanda vi um brilho diferente chegar, talvez a luz de uma esperança para lhe devolver a crença no retorno da saúde do marido.
Voltei para a minha sala, sem entender o que havia dito, mas o meu coração batia suave e em meu peito a sensação de conforto inundava todo o meu corpo.
Respondi os emails sem sentir cansaço ou mesmo tédio.
Capítulo 8 – O almoxarifado
O trabalho estava intenso e seria preciso ficar até mais tarde para dar conta de mais emails, confirmando a compra de calçados por todo o país, pois além dos pedidos para os chineses, os negócios iam tão bem que era preciso dobrar o trabalho na fábrica, inclusive com a contratação de temporários.
Lá pelas nove da noite, Didu apareceu na sala e pela primeira vez começou a latir! Falei para o meu amigo: -É melhor você parar de latir, porque se as pessoas não conseguem vê-lo, de repente podem ouvi-lo e aí, estamos encrencados!
Didu não parava de latir e parecia querer que eu o seguisse. Olhei para a tela que me mostrava mais de duzentos emails para responder, pensei bem e resolvi fazer o que o meu amigo me pedia.
O cão saiu correndo pelo corredor e foi descendo as escadas. Fui atrás, encontrei com o Juliano que substituía o Valdemar e ele me disse:-Onde vai com tanta pressa, Roberto Cláudio?
Sorri e respondi: Esqueci a minha escova no banheiro lá do andar de baixo! Juliano ainda brincou: Você está ficando velho, já está começando a esquecer das coisas...
Depois de uns bons lances de escada, Didu parou em frente do que era o almoxarifado da fábrica. Didu com a sua pata arranhava a porta e parecia querer me avisar de alguma coisa.
De repente, comecei a sentir um cheiro diferente! Parecia que alguma coisa estava sendo queimada! Gritei pelo vão da escada: Juliano! Juliano! Traga a chave do almoxarifado! Rápido!
Um minuto depois, Juliano abria a porta do almoxarifado e lá perto dos armários onde ficavam os litros de álcool que eram utilizados na limpeza da fábrica, um pequeno foco de incêndio se iniciava!
Rapidamente, Juliano que pertencia inclusive à Brigada de Incêndio da fábrica, conseguiu apagar aquilo que poderia ter se transformado em um incêndio de grandes proporções, pondo fim a todo o estoque de calçados da fábrica que ficava justamente nas salas atrás do almoxarifado.
Liguei para o Magalhães que em questão de minutos já estava na porta da fábrica subindo as escadas a mil por hora, preocupado com o acontecido.
Depois de saber de tudo, me abraçou e disse: Obrigado, Roberto Cláudio, se um incêndio tivesse posto fim a esta fábrica, adeus chineses, adeus nosso trabalho!
Agradeci, marquei o meu ponto e foi aí que eu percebi que Didu havia desaparecido depois de ter me avisado sobre o foco de incêndio.
Onde teria ido o meu amigo? Eu queria muito saber, mas estava tão cansado que acabei por pegar a minha bolsa e ir para o ponto de ônibus, pois queria chegar logo em casa, para me atirar na cama, dormir e sonhar qualquer sonho em que não tivesse que responder tantos emails.
Capítulo 9 – O fim de semana
Depois de um dia tão cansativo, finalmente chegou o final de semana. Era um sábado de manhã, fiz o café, tomei e depois senti uma estranha sensação de vazio.
Normalmente o sábado nos oferece aquela sensação de liberdade e tranqüilidade, mas neste sábado eu sentia que faltava algo para mim. Foi então que eu me perguntei: Se Didu seria apenas fruto da minha imaginação, por que ele não me acompanhava até o meu apartamento? Por que apenas me aparecia no trabalho e, no máximo, me acompanhava até lugares bem próximos da fábrica?
Liguei para a minha irmã e até pensei em contar sobre o Didu, mas pensei comigo mesmo: Será que ela não vai pensar que eu estou perdendo o juízo? Será que ela vai fazer uma relação com a época em que eu precisei do auxílio de um psiquiatra quando em minha adolescência eu me sentia perdido, sem rumo?
Conversei sobre o dia a dia, sobre a saudade dos nossos pais, sobre o imposto de renda, mas não tive coragem de falar de Didu, desliguei o telefone e fui passear num parque perto de onde eu estava.
No parque vi donos e seus cães passeando, alegres, brincando e me deu vontade de fazer o mesmo com Didu. Vi crianças correndo ao lado de seus cães e me deu vontade de ser criança novamente e ver a vida apenas pelo seu lado mais leve, que são as brincadeiras, os gritos e as alegrias por qualquer coisa que apareça em nossa frente.
Observando uma senhora com o seu cão, percebi que ambos eram idosos, o passo lento de um acompanhava o lento passo do outro, em um ritmo que traduzia paz e sabedoria. Para que correr? Acabei por me fazer esta pergunta ao ver os dois num passo tranquilo e sem nenhuma pressa.
Um jovem casal se abraçava, os dois sentados em um banco enquanto o cão os observava, como se quisesse partilhar daquele momento mágico do amor, em uma feliz matilha.
O sol já se punha quando voltei para casa e, mais do que nunca, por incrível que possa parecer, torci para que o domingo passasse o mais rápido possível, para que a segunda-feira me trouxesse a oportunidade de rever Didu.
Capítulo 10 – O Silêncio
Às seis da manhã eu já estava em pé, fazendo o meu café e passando a minha roupa. O banho foi rápido e o ônibus pareceu demorar mais do que o costume, tudo porque eu queria rever Didu.
Subi as escadas da porta da frente da fábrica, marquei o ponto uma hora mais cedo do que o meu horário de entrada e em minutos estava em minha sala.
Olhei pelo corredor, procurei embaixo da minha mesa e nada. Fui até as outras salas, chamei por ele e nada.
Andei por todos os espaços do escritório da fábrica e não encontrei Didu, mas refletindo melhor me tranquilizei dizendo: Ele só aparece quando quer e sendo assim, não devo me preocupar, pois ele virá...
A manhã se passou, a tarde chegou e a ansiedade começou a retornar, pois às seis da tarde, quando todos se foram, o silêncio parecia doer os meus ouvidos, pois Didu não aparecera.
Eu já havia respondido todos os emails do dia, tão agitado que estava na espera de rever o meu querido cão e, sendo assim, não havia nenhuma razão para permanecer na fábrica.
Ainda assim, esperei por mais quarenta minutos e, percebendo que ele não apareceria, a alternativa foi ir embora.
No caminho de volta para o meu apartamento vi cães de rua correndo, provavelmente com muita fome e carrapatos, mas eles até que me pareciam felizes em sua liberdade.
Gatos pulavam de telhado em telhado, pombos recolhiam migalhas de qualquer coisa para matar a sua fome, pássaros voavam de fios para fios, cantando a alegre música da Vida.
Todos os animais que via me lembravam Didu. Onde ele estaria agora? Teria sido apenas um momento de fragilidade da minha mente que o tinha criado? Seria apenas um pouco do menino que ainda resistia dentro de mim, criando amigos imaginários que ocupavam o espaço que deveria ser da maturidade?
Era tarde quando eu cheguei ao meu apartamento, pois acabei andando sem rumo pelo centro da cidade, tentando preencher o impreenchível desejo de ficar ao lado meu amigo cão, de passar a mão em sua cabeça e, simplesmente, de ficar ao seu lado sem falar e sem precisar ouvir nada.
Atirei-me na cama e, neste momento, me lembrei de Ana. Quanta saudade daquele tempo em que éramos dois e tão felizes. Percebi o quanto poderia ser feliz se pudesse ter Ana de volta e Didu para ser o cão de nossa família. Quem sabe teríamos gêmeos, um menino e uma menina e os dois cresceriam ao lado de Didu.
No fim de semana iríamos para um parque e correríamos felizes, brincando e rolando na grama verde, lado a lado, todos juntos, como uma grande e feliz família.
Capítulo 11 – A bola
Acordei com uma enorme sensação de felicidade. O pão com queijo me pareceu mais gostoso do que sempre, o café tinha um sabor especial e o banho ainda o senti mais refrescante do que todos os dias.
Há manhãs em que tudo nos parece melhor e eu tinha a absoluta certeza que este seria um dia muito especial para mim.
A notícia melhor já me esperava na fábrica. Ao chegar encontrei o Valdemar novamente em seu posto! Como por um milagre, nada afetara o homem que insistira em voltar a trabalhar o mais rápido possível, apesar das recomendações médicas de muita prudência.
Abracei Valdemar e disse: Estou muito feliz em vê-lo tão bem! Valdemar me olhou e falou: É... A gente só dá valor quando se corre o risco de perder. É assim com tudo na vida e também com a nossa vida...
Nos cinco minutos que ficamos conversando ele contou que no dia em que tudo acontecera, um fato havia chamado a sua atenção. Ao cair, ele podia jurar que tinha visto um cão chegar bem perto dele para ver o que tinha acontecido.
A sua mulher havia dito para ele que isso devia ser coisa da batida na cabeça que ele havia levado quando caiu, pois como é que podia aparecer do nada um cão dentro da fábrica?
Eu sorri e Valdemar continuou a falar: Pois é, eu me lembro que queria me levantar para acionar o alarme ou pegar o telefone para pedir ajuda, mas que não conseguia. Eu tentei me levantar até que perdi totalmente os sentidos, só acordando no hospital.
Quase que falei o que eu sabia sobre o cão. Apenas me segurei por temer que uma emoção mais forte pudesse abalar a saúde do homem que acabara de sair do hospital e estava tentando retomar a sua vida normal.
Desejei um bom dia para o Valdemar e fui para a minha sala, certo de que durante o dia, Didu reapareceria.
Dito e feito, às cinco da tarde Didu entrou na sala. Como sempre, ninguém notou e eu fiz um sinal para que ele se aproximasse. Tirei do meu bolso uma bolinha e joguei para outro lado da sala. Didu olhou para mim e olhou para a bolinha.
De repente, como se tivesse tomado a decisão rapidamente, voou até a bolinha que estava próxima da mesa da Mirthes, pegou a bolinha na boca e a trouxe de volta. A funcionária soltou um grito e disse: - Cruzes! A bolinha pulou sozinha aí para a sua mesa, Roberto!
Eu queria cair na gargalhada, mas me segurei... Deve ter sido o ventilador... Adilson, diminui um pouco senão a gente acaba saindo voando pelo corredor!
Todos riram e eu, me abaixando para pegar a bolinha que Didu havia me trazido, olhei para o meu amigo que novamente pareceu me sorrir.
A vida estava de volta para mim, pois o meu cão estava ao meu lado novamente.
Capítulo 12 – Perguntas
Fiquei até mais tarde esta noite no trabalho, pois eram muitos os emails a serem respondidos, pedidos de compra de calçados chegavam do mundo inteiro e eu precisava dar conta de todos eles, para passar para o Departamento de Produção realizar as providências necessárias.
Enquanto respondia os emails, conversava com Didu que parecia também estar feliz por estar ao meu lado.
Em um dado momento, parei meus toques no teclado, olhei para Didu e perguntei, aproveitando que não tinha ninguém na sala:
Amigão, por que você vive aqui? Esta era a casa dos seus donos? É por isso que você não quer sair daqui? O que aconteceu com eles? Como se chamavam?
De repente, me vi perguntando coisas e, por incrível que pareça, imaginava até que Didu pudesse me responder.
Mesmo sem responder, os olhos do cão pareciam ganhar um brilho diferente, como se em algum momento pudesse até cair uma lágrima, se é que cães podem chorar.
Depois da minha última pergunta, Didu se levantou e saiu da sala, correndo pelo corredor. Pensei em ir atrás dele, insistir nas perguntas, mas recuei.
Neste momento ficou claro para mim, a razão porque em tantos momentos colocamos as pessoas que amamos contra a parede querendo que elas nos respondam coisas difíceis de responder.
Exigimos a verdade, cobramos uma postura, uma coerência que na verdade não importa em uma relação. Basta gostar, é suficiente amar, por isso devíamos ter mais cuidado quando conversamos com quem amamos.
Achamos que por serem pessoas que conosco convivem, elas tem a obrigação de nos dizer tudo o que os seus pensamentos e os seus atos contêm e nem sempre isso é possível.
Amar também é não perguntar quando a pergunta poderá constranger, amar também é fazer de conta que não entendeu, quando cobrar algo será penoso para quem tiver que responder.
É preciso aprender, por mais que seja difícil, que conviver é respeitar os silêncios que cada um de nós precisa ter em alguns momentos, pois os segredos pessoais são espaços que não devemos querer invadir, trazê-los para o nosso saber.
Amar é mais do que conviver, é aceitar que os outros não precisam ser réus confessos de todos os seus atos, todos têm o direito de guardar para si aquilo que considerem apenas os seus segredos e assuntos pessoais.
Naquela noite fui para o meu apartamento arrependido de ter pressionado o meu amigo Didu com perguntas que mais fariam sentido em investigações policiais e jamais, em uma relação de verdadeiros amigos.
Capítulo 13 – O olhar
Na manhã seguinte, a primeira coisa que fiz foi procurar Didu, pois queria passar a mão em sua cabeça, brincar com ele, enfim tentar me desculpar pelo dia anterior.
No meio da tarde, vi Didu correndo pelo corredor e como ninguém conseguia vê-lo, a cena era incrivelmente divertida!
O Magalhães conversava com o Murilo, do Financeiro e Didu passava pra lá e prá cá, sem que os dois nem imaginassem que um cão pulava entre os dois.
Fiz um sinal para o Didu, o Magalhães até pensou que era com ele, mas rapidamente disfarcei e passei a mão em minha cabeça, para que ele entendesse que era outro o meu gesto.
Didu veio até a minha sala. Olhei para o cão e, como não podia falar em voz alta, pois pensariam que eu estava ficando louco, falei com o olhar e disse o quanto sentia pelo fato de tê-lo pressionado no dia anterior.
O cão pareceu entender e se aproximou mais de mim. Passei a mão em sua cabeça, sempre tentando dissimular os meus gestos para que não me vissem passar a mão no nada.
Os nossos olhares disseram tudo. Não havia necessidade nem de mais olhares e tampouco de palavras, aliás, as palavras às vezes têm o poder de não demonstrar o que sentimos.
Um verbo errado, um tom menos simpático pode transformar uma frase simples em uma deselegância ou até em uma desavença.
Sempre me preocupei ao responder meus emails, pois é muito mais fácil ser mal interpretado ao se escrever um email. Basta uma vírgula, uma “boa tarde” que não se disse para não se perder tempo, para que se crie um desentendimento. É preciso sempre se escrever emails imaginando-se do outro lado, lendo.
Em contrapartida, a linguagem do olhar, como da forma que nos falamos, Didu e eu, tem o poder de abrir o nosso coração e entregá-lo ao outro.
Já estava quase na hora de uma reunião com a Diretoria da fábrica e eu não podia mais brincar com Didu, precisava retornar ao mundo das coisas visíveis, dos negócios palpáveis e me entregar de corpo e alma ao meu trabalho.
Fechei mais negócios pelos emails, falei ao telefone com outros compradores, fui para a reunião, falei, ouvi, escrevi e me senti integrado ao planeta Terra.
Afinal de contas, a vida não é só para meditar, não basta apenas estar em contato com os que são apenas vistos por nós, é necessário almoçar, tomar banho, assistir televisão, ouvir rádio porque este é o pacote total que compramos quando viemos para cá.
À noite, já em meu apartamento, em minha cama, deitei-me e, como era de costume, as imagens do dia picotavam em minha frente, como se fosse uma sucessão de trailers de filmes recentes que eu mesmo havia vivido.
Sempre quando fecho os olhos, posso ver as pessoas com as quais eu conversei durante o dia, mas aquelas imagens de um homem e de uma mulher que eu, com certeza, eu jamais havia visto, estavam presentes nestas minhas lembranças do dia.
Fiquei me perguntando: Quem seria este casal? Se eu não os vi ainda, como é que podem estar presentes? Deixei a tentativa de resposta para o dia seguinte, pois nem vi quando adormeci.
Capítulo 14 – A promessa
A manhã estava muito quente, o ar condicionado não estava funcionando e resolvi ir até o espaço onde os funcionários costumavam almoçar. Sentei-me em umas das mesas do refeitório e podia perceber toda a movimentação do pessoal da cozinha que preparava o almoço para os funcionários da fábrica.
Foi então que apareceu Didu e eu confesso que toda vez que ele aparecia eu ainda ficava preocupado, pois alguém podia vê-lo. Na verdade, é assim que acontece, pois quando temos um segredo acabamos sempre sobressaltados com a possibilidade de alguém descobri-lo. Talvez por isso, segredos são tão atraentes quanto preocupantes.
Didu chegou e me puxou pela perna da calça, como se quisesse que eu o acompanhasse. Não tive dúvidas e o segui, afinal havia aprendido que com Didu, não adiantava contrariá-lo, pois ele sempre me convencia.
Segui com Didu por trás da fábrica até onde parecia ter sido um quintal de uma casa. Ele foi correndo na frente até que chegou até ao muro que separava a fábrica do que parecia ser um quintal de uma casa.
Ele parecia querer atravessar o muro e, pensei comigo mesmo, por que ele não atravessa? Se ninguém o vê, ele deve ser um espírito ou um fantasma e sempre ouvi dizer que barreiras não impedem a passagem de fantasmas e espíritos.
Falei para Didu: - Amigão, não temos como passar para o outro lado, pelo menos eu não consigo. Tenho que voltar para trabalhar, vamos fazer o seguinte: Amanhã eu prometo que vou ver se consigo descobrir quem mora aí do lado e, de repente, se você aparecer tentamos os dois ir até lá.
O cão pareceu entender e voltamos os dois, lado a lado, subi as escadas e cheguei até a minha sala. Olhei para o lado e Didu não estava mais ali. Talvez já tivesse realmente ido embora, quem sabe para esperar o dia seguinte chegar mais rapidamente.
Enquanto respondia os mais de quatrocentos emails, fiquei a refletir comigo mesmo: - Quantas promessas fazemos em nossas vidas e algumas que sabemos serem muito difíceis para cumprir? Esquecemos que nossas palavras podem produzir sonhos e que sonhos dos outros não são feitos para serem desfeitos por nós. Podemos até acabar com os nossos sonhos, porém não temos o direito de destruir os sonhos de alguém.
Eu me lembrei de um jurado que vi certo dia destes na televisão, destruindo um sonho de um rapaz que sonhava ser um cantor. O jurado falou palavras tão ásperas, talvez porque havia sido contratado para ser o “malvado” do júri, mas que direito ele tinha de derrubar o castelo de alguém, apenas pelo desejo próprio de fama ou de ganhar dinheiro?
Imagine se alguém da direção da emissora tivesse a sensibilidade e lhe dissesse que ele também não tinha talento para ser jurado? O que ele faria? Teria a mesma reação que teve quanto ao candidato a cantor e diria para o diretor que ele não tinha talento suficiente para estar na direção da emissora?
Reflexões a parte, voltei para a minha realidade e pensei:- Se a promessa a Didu havia sido feita, eu teria que cumpri-la e prometi a mim mesmo que faria. As luzes da cidade já estavam acesas quando eu esperava o ônibus chegar para voltar ao meu apartamento.
Capítulo 15 – O muro
No dia seguinte perguntei ao Alfredo, um dos mais antigos funcionários da fábrica, quem morava na casa que ficava ao lado da fábrica. Ele me respondeu:
- Morava um senhor muito simpático, o “seu” Alfredo, e a sua esposa, a Dona Estela. Eles eram muito legais, certa vez quando eu passei mal do estômago, fui até a casa deles e eles me deram um chá de camomila que ajudou muito!
Perguntei: Eles não moram mais na casa?
Alfredo respondeu: - Não. Primeiro foi a Dona Estela que faleceu, passados alguns meses “seu” Alfredo também partiu desta para uma melhor. Hoje quem mora na casa é o filho deles, o Odair com a mulher e os filhos. O Odair também é um cara muito legal!
Dei um até logo para o Alfredo e fui responder meus emails. Eram tantos os pedidos que a produção dos calçados não estava dando conta.
Na hora do almoço resolvi passar em frente da casa que ficava ao lado da fábrica, a tal casa que tinha o muro que Didu queria que eu atravessasse para me mostrar alguma coisa.
Na porta da casa estava o homem que deveria ser o Odair, o filho do “seu” Alfredo e de Dona Estela.
Passei, cumprimentei-o enquanto tirava o celular que estava tocando, do bolso esquerdo da calça. A chave do meu apartamento que estava em um chaveiro que tinha uma pequena bola de futebol, do nada, caiu do meu bolso e rolou em direção a casa como se quisesse ir até lá.
O homem agachou-se, pegou a chave e disse sorrindo: - Opa! Parece que ela está querendo fugir de você!
Enquanto eu desligava o celular, pois ninguém falara nada do lado de lá, sorri também e agradecendo, recebi as chaves do homem.
Ele completou: - Você trabalha na fábrica?
Respondi que sim e ele complementou dizendo que o seu pai vira a fábrica ser instalada e que ele costumava quando criança brincar de chutar bola no muro e que muitas vezes a bola caía do lado da fábrica e que tinha que pedir para que jogassem de volta.
Conversa vai, conversa vem, ficamos uns cinco minutos falando da fábrica, das mudanças que aconteceram na rua depois da fábrica ter sido instalada e, para não ficar diferente de conversas entre homens, também falamos de futebol.
O papo estava tão bom que quase ia me esquecendo da promessa que fizera a Didu. Quando me lembrei, arrisquei a pergunta:
Vocês já tiveram um cão? Odair sorriu e respondeu:
Tivemos um cão maravilhoso, era do meu pai e eu ainda tive a oportunidade de brincar muito com ele. Quando eu jogava, batendo a bola no muro da fábrica, o Rex ficava muito agitado, correndo para lá e para cá, também querendo pegar a bola.
Neste momento, ao ouvir a frase dita pelo Odair, senti um frio subir pelo meu corpo. Didu seria o Rex?
O apito da fábrica me chamou à realidade, me despedi de Odair e voltei em direção ao trabalho, sem ver Didu, mas quase que com a certeza que ele estava ali, ao meu lado, me acompanhando, só que resolvera não aparecer também para mim.
Capítulo 16 – Um dia daqueles
Acordei com uma enorme dor de cabeça, o ônibus pareceu demorar mais do que o normal, coloquei um tênis que me apertava os pés e para completar, esqueci o guarda-chuva e começou a chover justamente quando eu desci do ônibus para ir em direção à fábrica.
É interessante como quando uma coisa não vai bem, a nossa mente acaba por induzir que as outras também não darão certo e aí tudo parece realmente não dar certo. Acho que é isso, nós é que acabamos criando uma corrente negativa a partir de um fato normal que é alguma coisa que não acontece como desejamos.
Mas, como eu ainda não sou perfeito, talvez demore uns quatrocentos anos ou quem sabe sei lá quantas vidas para me tornar um ser completo, lá fui eu ampliando a sucessão de coisas desagradáveis durante o dia.
De cara, encontrei a Kelly e fiquei extremamente estressado quando ela me falou que eu ainda não havia enviado o relatório das vendas do mês passado. Eu queria apenas responder: E daí? Qual é o problema? Eu sou apenas um, ainda não consegui me multiplicar em dez!!!
Resisti e apenas disse: Ok! Fique tranquila que até o final da tarde estarei encaminhando... Falei e fui saindo me mordendo por dentro de raiva, o que me fez bater com o joelho na quina da mesa.
Sentei-me, contei até dez, vinte, trinta, e aí liguei o meu computador. Na tela apareceu uma imagem de um lugar que parecia o paraíso e sonhei por um instante com a possibilidade de ganhar na loteria e viver só de brisa, céu, sol e mar.
Contei de novo até dez, vinte e nem precisei chegar aos trinta, pois o Magalhães já estava na porta da minha sala me perguntando se o novo pedido dos calçados que viera da China já havia sido encaminhado.
Sorri o meu sorriso mais amarelo, respondi que já e neste momento me deu vontade também de dizer: - Não! Mandei por engano para o Alaska, mas logo que os esquimós nos devolvam os sapatos, enviarei de novo para os chineses...
O Magalhães nem bem saiu e já pude ver o até então desaparecido Didu ao lado de minha mesa.
Irritado com tudo, olhei para ele como se ele tivesse culpa de tudo que estava me acontecendo e virei os olhos, como se estivesse querendo ignorá-lo. Didu apenas deitou-se aos meus pés e ali ficou durante todo o dia.
Apenas às seis da tarde eu havia conseguido aliviar a minha tensão e voltei os meus olhos para o cão que continuava simplesmente ali, ao meu lado.
Percebi que toda a minha irritabilidade não resolvera, ela não tinha o poder de ajustar nada, de fazer voltar a minha tranquilidade. Raiva só leva à raiva, tristeza só nos remete a mais tristeza.
Estiquei o meu braço e passei a mão na cabeça de Didu e foi aí que percebi que ele em nenhum momento havia cobrado a minha promessa. Amigos de verdade são assim, não se preocupam em cobrar nada, apenas permanecem ao nosso lado e isso já basta para a grande prova da amizade.
Todos os funcionários da fábrica que trabalhavam em minha sala já haviam ido embora quando eu me despedi de Didu, com mais um carinho em sua cabeça. Confesso que quase o chamei de Rex, mas apenas sorri e acenei quando me voltei para trás e ainda o vi na porta da minha sala me vendo ir embora.
Capítulo 17 – Nota Dez
À noite, em meu apartamento, uma estranha sensação me perseguia, apesar de todas as tentativas de afastá-la de mim. Havia no meu peito uma vontade imensa de ver Didu, de levá-lo para o outro lado do muro, dentro da casa e ver como ele reagiria ao estar novamente no lugar onde eu imaginava que ele teria sido o Rex, o cão do “seu” Alfredo e de Dona Estela.
Parecia até que eu conseguia vê-lo brincando com o Odair, correndo atrás da bola e na minha imaginação eu também estava ali, vendo e participando de tudo. Senti até um pouco de inveja do Odair, pois ele brincou com o seu cão, sabendo que todos também podiam saber dessa sua alegria.
Nós temos dentro de nós a necessidade de que os outros nos vejam felizes, para nos sentirmos ainda mais felizes, precisamos da aprovação do mundo para nos acharmos completos, não nos basta a própria satisfação, é preciso que pelo menos alguém nos aprove, nos dê a nota dez para que nos sintamos verdadeiramente completos.
Até hoje me lembro o quanto era importante para mim que meu pai gostasse do que eu fazia, que a minha mãe aprovasse os meus atos, que os meus amigos me achassem inteligente, que a minha namorada me achasse bonito, que a minha professora percebesse o meu esforço.
Eu acho que isso faz parte do ser humano, a necessidade de estar ajustado em seu meio. Não nos basta nos sentirmos importantes, precisamos que os outros nos achem assim.
O sono veio e entre pensamentos e lembranças, adormeci. Sei lá com o que sonhei, mas se pudesse escolher seria ter sonhado com o meu pai me ouvindo ler aquela redação que eu havia feito na escola.
Eu adoraria olhar pelo canto dos meus olhos e vê-lo no sofá, sorrindo, me ouvindo falar. Minha mãe ao seu lado estaria com os olhos cheios de lágrimas de emoção e alegria e minha irmã na poltrona ao lado me olharia com o olhar mais terno do mundo.
Se eu pudesse escolher o meu sonho talvez quisesse escolher para todas as noites sonhos felizes e nem sempre é isso o que acontece. Às vezes sonhamos que caímos de precipícios, que nosso corpo vaga pela casa batendo de parede em parede, sonhamos que estamos perdidos em ruas que não conhecemos, nos vemos atacados por jovens bandidos e fugindo de algo que nem sabemos o que é.
Mas, não seria bom termos apenas bons sonhos, pois os terríveis pesadelos precisam fazer parte das nossas noites, pois são eles que nos amadurecem, são os problemas que nos fazem crescer e não apenas as alegrias.
Qual seria a graça da vida se tudo o que nos acontecesse fossem bons fatos? São as doenças, são as dores, são as preocupações que nos levam a ser mais humanos, a refletir também sobre as doenças, as dores e as preocupações dos outros.
Cabe-nos saber lidar com tudo isso não nos tornando pessoas amargas e sem esperança. É dentro de nós que devemos procurar as medidas certas para que aprendamos a ser melhores, a ser menos egoístas e mais humanos. Afinal de contas, voltar a viver centenas de vidas apenas pelo prazer de sermos diversos personagens não nos fará célebres atores do universo.
Nem deu tempo para dar boa noite para mim mesmo e eu já estava sonhando. Não me lembro com o que sonhei.
Capítulo 18 – A hora do almoço
No dia seguinte, a minha cabeça parecia leve e solta do meu corpo. Era como se toda a pressão do dia anterior tivesse ido pelos ares e os pensamentos voavam pelo espaço.
Entre o banho e a chegada na fábrica, tudo parecera ter passado rápido demais, o café, o ônibus, eu nem havia notado se o trânsito estava intenso ou não.
Marquei o ponto e lá fui eu em direção à tela do computador e não me preocupavam os sei lá quantos emails que eu teria que responder, os relatórios que precisaria preparar, eu estava de bem com a vida e isso me fazia não me preocupar com nada.
Cheguei a minha sala, cumprimentei a todos e trabalhei sem nem ver o tempo passar. Ao meio-dia em ponto sai para almoçar.
Ao sair, virei para a esquerda já decidido em qual restaurante iria almoçar. Foi quando encontrei o Odair, o filho do “seu” Alfredo no portão de sua casa.
-Bom Dia! Ele me cumprimentou e nem bem eu respondi, ele complementou: - Sabe, meu amigo! Aquele dia você me perguntou se nós tínhamos tido um cão e fiquei a semana inteira me lembrando do Rex! Foi muito bom! Se você tiver um tempo eu quero lhe mostrar a minha casa e o muro onde eu jogava futebol com o meu cão. Você tem um tempo?
Na verdade, eu queria almoçar rapidamente para voltar ao trabalho, mas me lembrei que eu tinha uma promessa com o Didu e precisava cumpri-la. Aceitei e lá fui entrando na casa do Odair.
Um garoto de cerca de sete anos estava chutando uma bola exatamente contra o muro e Odair foi dizendo: - Este é o meu filho André! Ele também adora jogar bola e olha que ele tem jeito pra coisa, hein? Quem sabe ele vira um craque e vai jogar até na seleção? O meu pai sonhava comigo sendo um jogador famoso, mas eu nunca fui bom de bola, o máximo que eu conseguia era dar uns dribles no Rio...
Ao ver o outro lado do muro da fábrica, meus olhos imaginavam Didu, quero dizer, o Rex correndo atrás da bola e brincando com o menino Odair.
De repente, do nada, apareceu Didu no meio da cena. O garoto corria, chutava a bola contra o muro e Didu corria também atrás dela. A sensação foi estranha, pois por alguns momentos eu podia acreditar que todos estavam vendo Didu, mas Odair continuava a falar:
- Pois é, um cão é muito bom para uma criança. Eu até queria trazer um para casa, para ele ser companhia para toda a nossa família e, em especial, para o meu filho André, mas como ainda não sabemos se vamos continuar com essa casa, ainda não tomei a decisão de adotar um novo Rex.
Perguntei então: - Você está pensando em se mudar?
Odair respondeu: - É... A casa é enorme e a Rose tem reclamado que dá muito trabalho, esse quintal é muito grande e ela gostaria muito de morar perto da casa da mãe, pois tudo ficaria mais fácil. Bem, sei lá... Eu gosto muito daqui, este lugar é uma lembrança viva dos meus pais, da minha infância e eu não sei se teria coragem de alugar, quanto mais de vender a casa...
Percebi que ele estava emocionado quando continuou a falar: - É muito complicado se desfazer daquilo que fez parte da nossa vida, Cada cantinho aqui me traz boas lembranças. Na sala tem um sofá onde os meus pais se sentavam para receber as visitas e era muito bom vê-los ali, com o Rex ao lado deles.
Na parede as fotografias antigas mostravam parentes que já haviam ido embora e parecia que cada rosto acompanhava todas as cenas que na casa aconteciam.
Odair não parecia querer parar de falar: -Os quadros eram janelas do passado que se mostravam no presente e aqueles que já não estavam aqui nesta vida, conseguiam através dos quadros permanecerem fazendo parte de tudo que acontecia.
Enquanto o homem falava, o menino continuava a jogar a bola contra o muro. Didu parecia o cão mais feliz do mundo, correndo para cá e para lá! Eu jamais vira o Didu tão alegre, ele que sempre me parecera um cão tímido, contido, agora era o mais saltitante dos cães, com uma energia que parecia mágica.
Fiquei ali por mais uns instantes e me despedi de Odair, prometendo voltar outro dia para conversarmos. Quando saí, olhei para trás e Didu continuava a brincar correndo atrás da bola. Voltei para a fábrica e nem fui almoçar, apenas passei na lanchonete e comprei uns pães de queijo.
Voltei sozinho, pois Didu, com certeza, não queria perder a oportunidade de ser o Rex novamente, pelo menos, por mais algum tempo e eu não ousaria chamá-lo para voltar comigo.
Ao marcar o ponto, me lembrava do que dizia minha querida tia Fátima: - Amar não é querer apenas ter quem amamos ao nosso lado, é saber que se a pessoa que amamos for mais feliz longe de nós, é preciso resistir ao nosso egoísmo de querermos tê-la ao nosso lado.
Capítulo 19 – O frio
A manhã estava fria quando saí de casa, já fazia um bom tempo que não era preciso vestir algo mais quente e acabei por escolher um blusão azul que já fazia um inverno que estava sem ser usado.
No trabalho todos estavam mais protegidos, o cheiro do café estava presente em todo o escritório da fábrica.
É interessante observar que no inverno, parece até que nós nos transformamos em outras pessoas, ficamos mais voltados para a reflexão, parecemos sentir mais a necessidade de nos aproximarmos uns dos outros, talvez para tentar combater a sensação de solidão que o frio nos oferece.
Quando vi Didu entrar na sala, a vontade que me deu foi de ir ao seu encontro e abraçá-lo e dizer que estava muito feliz por ele, mas me contive, pois todos pensariam que eu estava ficando louco ao abraçar o nada.
Olhei então para ele e o olhar do cão me pareceu agradecer pela oportunidade que ele havia tido de retornar ao tempo em que era o Rex do “seu” Alfredo e da Dona Estela.
Derrubei propositadamente uma caneta e ao me agachar para pegá-la passei a mão na cabeça de Didu, enquanto ele se deitava aos meus pés. Ali ele ficou até a hora do almoço quando saímos e fomos lá os dois pela rua.
Passamos em frente da casa do Odair e olhamos para dentro do portão e pudemos ver o muro e a bola que estava próxima de uma árvore. O garoto não estava por ali, nem Odair e nem a sua mulher, aliás eu ainda não havia conhecido a esposa do Odair, nem tampouco o outro filho do casal.
Continuamos a andar pela rua e passamos pela casa vizinha, uma casa antiga, amarela, onde não parecia mais morar ninguém. As casas estavam cada vez mais ficando vazias e sendo vendidas uma a uma para construção de prédios. A região estava cada vez mais ganhando edifícios, alguns individuais e outros que formavam condomínios.
As casas estavam desaparecendo, afinal de contas, o metro quadrado estava caríssimo e as construtoras não perdiam tempo e corriam em busca de lucros maiores, pois edifícios representam apartamentos e quanto mais apartamentos, mais espaços para serem vendidos.
A cidade não parava de crescer e era preciso verticalizar as moradias em prédios cada vez mais altos. É como se nós quiséssemos também querer chegar mais próximos do céu pela via terrestre, não querendo mais esperar pela hora da partida.
Andando com Didu pela calçada, em passadas lentas, perguntei a mim mesmo, porque ao mesmo tempo em que temos tanto medo da morte, ela nos fascina pelo seu mistério, pela sua imprevisibilidade e pela sua mágica sensação de liberdade.
Continuamos seguindo e eu parecia nem mais ter fome, queria apenas caminhar, caminhar como se o lugar para o qual eu me dirigia com Didu não fizesse parte deste plano de vida.
Capítulo 20 – O ladrão
À tarde o trabalho foi intenso na fábrica, pois além de cuidar diretamente das vendas, tive também que participar de uma série de reuniões para buscar um formato melhor de comunicação entre os departamentos, para melhorar o fluxo dos encaminhamentos.
Ao voltar para sala, o meu computador já apontava mais de quatrocentos emails para responder, de todos os lugares vinham mais pedidos, os nossos produtos estavam sendo muito bem aceitos em todas as partes do mundo e não havia produção que conseguisse dar conta de todo este sucesso nas vendas.
Era quase cinco da tarde quando ouvi uma gritaria intensa que vinha da rua. Olhamos todos pela janela e ainda pudemos ver um homem correndo enquanto que outros corriam atrás dele. Podia se ouvir gritos como “Pega!”, “Olha o ladrão!”, entre tantos outros.
O homem que fugia driblava os carros cruzando da direita para a esquerda, tentando com esta manobra escapar dos que vinham atrás. A multidão enraivecida queria alcançar o homem de qualquer jeito.
De repente, qual foi o meu susto, quando vi Didu ir também atrás do homem, ele ultrapassou com facilidade a multidão e estava por chegar perto do homem. Imaginei o que estaria acontecendo para que Didu também perseguisse o homem.
Quando imaginei que Didu conseguiria alcançá-lo, me surpreendi mais ainda quando vi o cão apenas ultrapassá-lo.
Foi tudo muito rápido, na esquina vi um carro surgir e ele iria atropelar Didu. Meu coração explodiu de desespero em um pulsar descontrolado quando imaginei o que iria acontecer.
Naquele momento nem lembrei que Didu não poderia ser atropelado, pois não era de carne e osso, apenas me desesperei pela possibilidade de perder o meu amigo.
O que aconteceu, em seguida, é quase impossível de ser descrito e mais ainda, de ser acreditado:
- O motorista do carro, que eu imaginei não conseguisse também ver Didu, com certeza iria atropelá-lo, porém por alguma razão que provavelmente jamais irei conseguir entender pareceu ver algo em sua frente, pois freou bruscamente!
Após o carro ter freiado, o homem que fugia também escapou do atropelamento, atravessando a rua sem ser tocado pelo carro. Em seguida, acabou tropeçando o que possibilitou que policiais que também estavam em seu encalço, conseguissem prendê-lo.
O fato é que, sabe-se lá como, Didu conseguiu salvar o homem de um atropelamento que poderia lhe ser fatal. Ele foi preso e, com certeza, iria receber a punição pelo crime que provavelmente teria cometido, mas não sofreu as consequências de um grave acidente com o carro.
Talvez ele possa, um dia, refletir e avaliando melhor os seus caminhos, possa mudar para um rumo melhor ainda nesta vida e isso só seria possível se ele continuasse vivo agora.
Didu foi voltando e, mesmo de longe, me pareceu que ele sorria e em meus pensamentos uma idéia muito clara que me veio:
-Temos muitas oportunidades nesta vida de corrigirmos os nossos erros e buscarmos caminhos mais corretos. Não é necessariamente obrigatório que se morra para que em uma vida futura possamos nos redimir dos erros cometidos nesta atual existência.
Por que esperar por outra vida, se podemos começar a crescer em nossos conceitos e atos nesta vida que hoje vivemos?
Neste dia, Didu não voltou mais para a fábrica ou, pelo menos, eu não o vi, mas eu tinha total convicção de que ele estava muito feliz, pois havia possibilitado que alguém tivesse outra chance neste atual plano de vida.
Capítulo 21 – A chave e o telefonema
Na manhã seguinte, depois de fechar a porta do apartamento para ir trabalhar, ouvi o telefone tocar. A primeira coisa me passou pela cabeça foi: É a Ana!!! Enquanto eu tentava colocar a chave, que estava mesmo com um problema e não girava normalmente, imagens passavam pela mente, eu me lembrava de quando eu e Ana vivíamos uma vida tão feliz. Será que teríamos alguma chance de retomarmos a nossa felicidade?
Ana havia me pedido para não lhe telefonar, pois ela precisava de um tempo para refletir e eu, mesmo morrendo de vontade de ligar para ela, resistia pois sabia que precisava ser mesmo assim. Ela é quem precisava decidir se queria que tentássemos de novo.
A chave insistia em rodar em falso e o meu coração disparado tentava atender o telefone mesmo estando do lado de fora do apartamento...
Quando finalmente consegui entrar, o telefone parou de tocar. Sentei-me na poltrona da sala e fiquei por quase vinte minutos esperando que ele tocasse novamente. Ele não tocou e só me restou ir para a fábrica pensando sobre como detalhes como uma chave que não gira, podem alterar os nossos destinos.
Cheguei à conclusão que tudo o que fazemos é importante e pode decidir o rumo de nossas vidas: - Um minuto que deixamos passar pode nos livrar de algo ou nos conduzir a este algo. Precisava fazer outra chave, pois este sim era um cuidado que me cabia ter, pois se eu não podia decidir por Ana para ela me ligar, pelo menos eu poderia não criar dificuldades para que o que eu tanto esperava, pudesse acontecer.
Cheguei atrasado e o Joel, novo colega de trabalho do meu setor, assustado, me encontrou na portaria e me contou que o armário que ficava ao lado de minha mesa inexplicavelmente havia caído e que por eu ter me atrasado, conseguira escapar de um grave acidente.
Sorri. Ele não entendeu nada, mas eu tive a certeza que o telefonema não atendido tinha sido providencial...
Naquele dia, a China não teve nenhum pedido de calçados providenciado, a caixa de emails explodiu com mais de sei-lá-quantos contatos, pois o dia foi só de providências para que o setor voltasse à normalidade.
Todos tentavam descobrir o que poderia ter acontecido com o armário, mas ninguém poderia imaginar que o mais importante foi que a Vida havia descoberto mais uma maneira de permanecer em um funcionário da fábrica que descobrira um pouco mais sobre ela.
Capítulo 22 – A imagem
Didu já estava ao lado de minha mesa quando em minha sala. A fábrica estava a todo vapor apenas na produção, pois os funcionários administrativos ainda não haviam chegado. O armário e a minha mesa haviam sido substituídos e a sensação era de que estava realmente em um novo espaço para trabalhar.
Didu parecia querer me dizer algo, pois logo que cheguei, ele levantou-se do chão e se foi em direção ao corredor como se quisesse que eu o seguisse. Lá fomos nós de novo em direção aquele muro que separava a fábrica da casa ao lado.
Ao chegar bem próximo do muro, Didu me pareceu aflito, como se quisesse ter palavras para dizer o que queria que eu entendesse. Animais não falam e por isso talvez, tenham recebido tanta sensibilidade, o que lhes permite sentir e nos repassar tudo o que sentem.
Fiquei ao lado do muro e de repente pude ver de forma não muito clara a imagem de um homem e de uma mulher desenhada pela natureza na tinta que cobria o muro. Eu sempre descobri imagens em nuvens, em pinturas de parede e também em azulejos antigos marcados pelo tempo, por isso a princípio achei que fosse apenas imaginação, mas fixando melhor o meu olhar eu tive a certeza de já ter visto a imagem daquele homem e daquela mulher em algum lugar.
Didu se aproximou também do que poderia ser a imagem do homem e carinhosamente encostou a sua cabeça no muro.
Pensei comigo mesmo: Se eu contar para alguém toda essa história, o que vão pensar de mim? Irão me chamar de louco? Afinal de contas, pessoas que enxergam o que os outros não vêem, seres que escutam aquilo que ninguém pode escutar, do que são chamados?
Lembrei-me então de tantos homens e mulheres que já encontrei pelas ruas “falando sozinhos”, “gesticulando com o nada”, seriam eles loucos ou apenas enxergavam e conversavam com “Didus”?
Passei a mão na cabeça do meu querido amigo cão e voltei para a minha sala. Todos já estavam trabalhando e, sorrindo, cumprimentei meus colegas e mergulhei nas centenas de emails que precisava responder.
A China queria nossos calçados e era preciso vendê-los, pois o Magalhães estava impaciente pela perda de um dia de trabalho por causa do armário que caíra sobre a minha mesa.
Sentei-me, olhei para a tela e nada mais fiz senão responder, responder e responder. Eu que procurava respostas, precisava dá-las aos que me escreviam. É assim mesmo que acontece, pois quando nos achamos com falta de algo, outras pessoas procuram dentro de nós aquilo que achamos não ter. Tudo porque é muito difícil saber realmente o que temos e as respostas que podem já estar dentro dos nossos corações e mentes, porém outros podem enxergá-las claramente.
Capítulo 23 – No ônibus
O dia havia sido muito cansativo, foram tantas as coisas que tive que fazer que às dezoito horas parecia que eu carregava o peso do mundo em meus ombros.
O ônibus que me levou de volta para o meu apartamento estava lotado e eu não conseguia pensar em nada a não ser em um banho e na minha boa cama que me esperava desarrumada, pois de manhã não havia tido nem tempo para nada a não ser tomar um café solúvel e ir embora para a fábrica.
Há dias em que tudo parece pesar mais do que o normal e um misto de cansaço e de tristeza me invadia. Lembrei-me de Ana, dos sonhos que havíamos feito juntos e também do momento da separação.
É muito difícil dizer e receber um adeus quando existe além do amor, também o costume de se estar juntos. Assim como aprender a dividir os momentos e os espaços é difícil, quando nos acostumamos com este dividir, o voltar a ser um só incomoda, nos dá uma estranha sensação de falta de um pedaço de nós.
Assim havia acontecido comigo e com Ana. Não posso dizer se ela poderia estar sentindo o mesmo que eu, mas sabia que, pelo menos, eu estava sentindo, o que me dava a certeza de que a dor de não estarmos juntos já fazia parte da nossa separação, pelo menos por mim.
Pensei que se Ana nos aceitasse de novo, talvez para ela eu tivesse a coragem de falar de Didu, pois para quem verdadeiramente amamos, contamos coisas que nos parecem segredos apenas íntimos.
Para quem confiamos, somos capazes de revelar nossas fraquezas, nossos medos, nossas neuroses, nossas dores do passado e do presente e, desta forma, deixamos mostrar tudo aquilo que escondemos do mundo.
Talvez tenha sido isso exatamente o que faltou em minha relação com Ana, pois mesmo amando-a com toda a minha vontade, não fui forte o suficiente para abrir o meu coração e a minha alma que sempre tranquei com todas as chaves.
Nem mesmo eu me conheço de verdade, pois as minhas dores e fraquezas tento esconder com o sorriso e o silêncio. Talvez se Ana voltasse, eu poderia tentar ser diferente, apesar de que de tanto nos escondermos dos outros, podemos nos tornar algo que nem mesmo mais sabemos o que é.
Se Ana voltasse... O que seria de minha vida se Ana voltasse? Poderia ser diferente ou seria tudo igual? Eu manteria os meus segredos a sete chaves e colocaria tudo a perder novamente? Esconderia tudo o que tenho vivido após ter conhecido Didu? Mostraria o meu amigo cão para ela ou teria medo que ela achasse que eu estava louco?
Há coisas que nem o futuro pode saber, pois está nele a dúvida de que o amanhã sempre pode ser diferente se um telefone tocar, se pneu furar, se o despertador não nos acordar, se as nossas opções de escolha driblarem o futuro e nos levarem a um caminho que não estava nos planos de Deus.
Afinal de contas, ele não nos guia, apenas nos orienta e sugere, cabe-nos a decisão de ir para a esquerda ou para a direita, de dizer sim ou não, de abrir os olhos ou fechá-los, de acordar ou de dormir mais um pouco, de querer algo ou rejeitá-lo, de descer neste ou naquele ponto de ônibus.
Onde eu precisava descer, o ônibus já estava. Resolvi puxar a corda e não ir para o próximo ponto, pelo menos hoje, não.
Capítulo 24 – A greve
O dia começou agitado. A greve havia começado na fábrica e os funcionários estavam com uma manifestação bem em frente da porta principal, com a coordenação do Sindicato.
No carro de som palavras de ordem eram pronunciadas de forma inflamada pelos participantes e os amarelinhos tentavam desimpedir o acesso da rua, bloqueado pelos manifestantes.
Até o Magalhães estava no meio de todo o pessoal, participando ativamente e naquele instante era ele quem ocupava o microfone. Eu nunca imaginara a possibilidade de vê-lo ali, ao lado de todos os seus colegas de trabalho assumindo uma postura de reinvidicações, mas lá estava ele firme e forte, parecendo um verdadeiro sindicalista cobrando da diretoria da fábrica providências urgente quanto a diversas solicitações do seu pessoal.
Eu me surpreendi ainda mais quando vi Didu no meio de todos, andando para lá e para cá. Fui passando entre os funcionários da fábrica para chegar mais próximo do meu amigo cão, porém eu não conseguia me aproximar, pois ele continuava seguindo em um ziguezague interminável.
Neste momento, Marina, que trabalhava no RH me chamou e disse: E, aí? Será que vamos conseguir alguma coisa do que estamos pedindo? Pelo que eu ouvi dizer, a diretoria está inflexível afirmando que não é possível atender mais nenhum dos pedidos, além dos que já haviam sido aprovados na última reunião com o sindicato.
Balancei a cabeça dizendo que não sabia. Eu, na verdade, estava mais preocupado com os caminhos que a minha vida deveria seguir do que com qualquer outra coisa. Não que estivesse sobrando dinheiro, pois a cada dia que passava, a inflação já rondava o país que parecia apenas flutuar numa bolha como se estivesse acima de todas as crises.
Presidentes passavam e pareciam distantes da realidade do país, embora alguns tivessem uma postura que os fazia mais ou menos simpáticos ao povo, os escândalos permaneciam mesmo com a alternância do poder e apenas a roda da corrupção é que mudava a sua rota de um lado para outro.
Naquele momento parecia que eu queria apenas achar Didu, tirá-lo dali e sentarmos na calçada ao lado dos moradores de rua que ficavam por ali perto.
Exatamente neste momento vi Didu vir ao meu encontro. Ele estava agitado, pois todo animal sente o clima que está acontecendo ao seu redor e aquela movimentação toda com certeza o havia deixado tenso.
Passei a mão em sua cabeça e saí andando em direção aos moradores de rua. Às vezes temos idéia que nos surgem e as deixamos de lado por qualquer razão e eu não queria deixar esta passar por mim apenas.
Caminhamos lado a lado e enfim chegamos à calçada onde aqueles homens ficavam simplesmente vendo a vida passar. Cumprimentei-os um a um e sentei-me ao lado daquele que cantava uma antiga canção de Jorge Benjor, cantada pela Gal.
A música dizia: “Ela já não gosta mais de mim... mas eu gosto dela, mesmo assim”
O homem cantava e os outros olhavam para ele. Naquele momento percebi que tudo tinha sentido na música e nos rostos de todos que estavam ali. Era o retrato de uma sociedade que não mais aceitava aqueles que vivem sujos pelas ruas, aqueles que se perderam dos rumos “normais” de um cidadão.
Quem teria coragem de abraçá-los? Quem se arriscaria em dizer-lhes um bom dia? Talvez alguém estendesse a mão para dar uma moeda, mas dificilmente ofereceriam a sua amizade. Outros levariam comida, alguns pagariam um café ou uma bebida, mas quem com eles se sentaria para simplesmente ouvi-los?
Resolvi que eu precisava fazer isso e não seria por esta atitude que eu “compraria” a minha “entrada” para um lugar melhor, na verdade era apenas algo que eu me impunha a fazer, talvez para querer contradizer o habitual, o tradicional e o comum.
Fiquei ali por um tempo e via os meus colegas de trabalho na manifestação que parecia não ter fim. Didu estava ao lado de outro cão de um dos moradores de rua e o incrível era que o outro cão parecia poder ver Didu, pois até se aproximara um pouco mais de onde o “meu” cão estava.
Eu me perguntei: Será que os animais conseguem enxergar quem já não mais faz parte deste plano de vida? Seria uma pergunta que eu gostaria de fazer para receber uma resposta, mas não sei para quem faria.
O homem que cantava a canção já estava dormindo estirado na calçada quando eu me levantei para ir embora. Os funcionários da fábrica permaneciam, porém em menor número, quando eu pude vê-los da janela do ônibus onde eu estava já pronto para ir embora.
Naquele dia também os emails não seriam lidos. Ainda pude ver Didu entrando na fábrica e ele, lá de longe, me pareceu sorrir, pois me pareceu mais tranquilo após ter ficado ao meu lado sentado com os moradores de rua.
O sol já estava indo embora e homem que cantava parecia estático, deitado na calçada. Com o que estaria sonhando? Com a vida que um dia tivera? Acordado já não tinha sonhos. Será que os teria dormindo?
Capítulo 25 – O trabalho
A greve durou três dias. O resultado? Alguns itens da proposta dos trabalhadores foram aceitos, mas a maioria ficou para o futuro, para a próxima diretoria em avaliar melhor a possibilidade de serem atendidos.
A paralisação poderia ter se prolongado por mais tempo, mas o dono da fábrica resolveu intervir trocando parte da diretoria que se mantinha irredutível quanto aos pedidos dos trabalhadores. Ninguém ganha em ser inflexível e os diretores que caíram descobriram essa verdade um pouco tarde demais.
Durante os dias da greve não vi mais Didu, pois nem eu consegui entrar na fábrica por causa dos grevistas que bloqueavam a entrada e nem Didu resolveu aparecer fora da fábrica.
Quando marquei o meu ponto na quinta-feira de manhã, a primeira coisa que fiz foi ir até o muro que ficava atrás da fábrica, pois várias vezes quando o cão não aparecia em minha sala, eu o encontrava ao lado do muro.
Acertei. Ele estava lá, deitado como se esperasse que, de uma hora para outra, alguém aparecesse para levá-lo para o passado onde tinha vivido. Pelo que eu havia descoberto nas conversas que tive com Odair, o vizinho, o pai dele, “seu” Alfredo tinha um cão que era muito querido por toda a família e eu achava que esse cão era o Didu que, por alguma razão, ainda permanecia neste plano de vida, pelo menos visível para mim.
Ao me ver, Didu se levantou e correu, vindo ao meu encontro. Eu me abaixei e passei a minha mão em sua cabeça. Naquele momento senti o quanto ele era importante para mim, como eu precisava de sua presença ao meu lado.
Caminhamos pelo gramado, entramos pela porta e depois de percorrermos os corredores chegamos até a minha sala. Foi incrível perceber que eu estava com saudade daquela centenas de emails que costumava responder, ficou mais clara ainda a importância de ter um trabalho, de ter uma missão para realizar, seja ela qual for.
Olhei para a tela do meu computador de uma forma diferente, parecia que ela havia ficado mais bonita, as canetas, os clipes, o grampeador, tudo parecia ter recebido “novas cores”.
Cliquei e apareceram sei-lá-quantos-emails. Fui respondendo um a um e me parecia tão leve o meu trabalho que nem vi o tempo passar. Meus colegas de sala pareciam também sentir o mesmo que eu sentia, pois um silêncio preencheu nossa sala, como se cada um quisesse prendê-lo dentro do seu corpo e senti-lo com plena intensidade.
Lutar por melhores condições de trabalho é muito importante, mas não podemos nos esquecer que para isso é preciso ter um trabalho e tê-lo nos dá uma sensação de sermos completos enquanto seres humanos. Eu, por exemplo, não consigo me imaginar sem trabalhar. Se me for permitido estar em plena atividade por toda a minha vida e pelas próximas que virão considerarei isso o melhor presente que poderia ganhar.
Foi um maravilhoso dia de trabalho e Didu não saiu do meu lado nem por um instante. Ao sair da fábrica eu pude vê-lo na escada como se já estivesse me esperando chegar amanhã.
Capítulo 26 – As palavras
No dia seguinte, Didu chegou cedo a minha sala. Como sempre, sentou-se aos pés da minha cadeira e ali ficou. Um pouco mais tarde, Juliano, que supervisionava a área de produção de calçados entrou em minha sala. Como todos os outros funcionários haviam saído para o almoço, ele ficou mais à vontade para exercer o que mais gostava de fazer que era falar dos outros companheiros de trabalho.
Ouvir comentários sobre a vida de pessoas que conviviam comigo no trabalho era uma coisa que muito me incomodava, mas Juliano, apesar desse defeito, era um bom homem e eu não tinha coragem de pedir para que ele parasse de ter essa atitude.
Ele, sempre que podia, vinha e contava alguma história. Eu fingia que prestava atenção, sorria e depois de alguns minutos ele esgotava o seu assunto e ia embora.
Porém, naquele dia Didu estava ali ao meu lado, quando Juliano começou a falar. Disse coisas sobre fulano, comentou que ele estava fazendo isso e aquilo, fez comentários sobre uma outra moça que trabalhava em outro setor e foi desfiando suas ácidas observações sobre os colegas de trabalho.
Notei que Didu foi ficando incomodado com aquilo. Pensei comigo mesmo: Se ele não pode entender o que Juliano está dizendo, por que está ficando assim tão irritado?
Juliano continuava a falar e eu não sabia mais o que fazer, pois Didu havia se levantado e estava rangendo os seus dentes como se fosse atacá-lo! Juliano não parava de falar e Didu cada vez mais estava ficando estressado...
Tentei disfarçar o movimento e com a minha mão afaguei a cabeça de Didu, tentando trazê-lo mais para perto de mim, distanciando-o de Juliano. O cão parecia prestes a atacá-lo quando Suzy entrou na sala, o que provocou a mudança de assunto na conversa do homem.
Juliano olhou para a moça e em seguida me deu um até logo e saiu da sala. Olhei para Didu que parecia transtornado. Talvez ele realmente não conseguisse entender as palavras, mas provavelmente havia sentido no ar algo desagradável, algo que o incomodara profundamente.
Foi neste momento que me dei conta que os animais conseguem perceber as nossas intenções, o que passa em nossa mente. Não há como enganá-los. Podemos mentir uns para os outros enquanto humanos, mas não podemos fingir para os animais, pois eles têm o poder de saber quem somos e o que pensamos.
É possível até que um animal goste de um assassino e fique ao seu lado, mas talvez seja porque neste caso, o animal faça isso por conseguir encontrar dentro deste ser a parte boa que ainda exista.
Didu ainda não estava totalmente calmo quando o deixei na porta da fábrica para ir embora.
A noite foi difícil, pois a imagem de Didu atacando Juliano se fez presente durante o meu sonho. Eu tentava segurar o cão, mas não conseguia. Didu parecia ter se transformado em uma fera em meu sonho. Acordei várias vezes e quando novamente conseguia dormir o sonho retornava, cada vez mais intenso e desesperador.
Às cinco da manhã decidi não tentar dormir de novo. Sentei-me no sofá da sala e fiquei refletindo sobre o sonho e somente me levantei dali quando o despertador tocou no horário costumeiro.
Tomei o café da manhã e fui para o trabalho pensando em quanto faz mal para nós mesmos ouvir e falar coisas desagradáveis sobre outras pessoas. Prometi a mim mesmo que conversaria, logo que fosse possível, com Juliano sobre o seu hábito de falar mal dos outros.
Não sabia se ele entenderia o que eu iria dizer, mas eu precisava fazer a minha parte. Se usar as palavras para denegrir outros é um mal, ouvir e omitir-se também é compartilhar o erro e assinar embaixo o nosso nome.
Capítulo 27 – O quadro
Eu já estava até acostumado em ver Didu e saber que outras pessoas não conseguiam vê-lo, porém em alguns momentos eu me perguntava qual seria a razão de tudo isso? Por que ele havia se tornado parte de minha vida, como um hábito que se adquire e não se consegue viver sem ele?
Certo de que na casa vizinha à fábrica, onde morava Odair e sua família, estaria a resposta para a estranha presença de um cão que somente eu conseguia ver, decidi que iria mais vezes na casa do rapaz que já havia se tornado quase um amigo.
No dia seguinte, na hora do almoço, ao passar em frente da casa peguei o celular como se estivesse atendendo algum chamado e comecei a falar com a imaginária pessoa do outro lado da linha, enquanto olhava para dentro da casa.
Os filhos de Odair brincavam de correr pelo quintal e a sua mulher estendia roupas no varal. Continuei disfarçando ao telefone, quando senti um tapinha em minhas costas.
Era Odair que, quando viu que eu estava falando ao telefone, fez aquele característico gesto pedindo desculpas e ficou um pouco mais distante esperando que eu desligasse.
“Despedi-me” com um até logo e cumprimentei Odair: e Aí? Tudo bem com você?
Odair sorriu e foi logo perguntando: Está na hora do seu almoço? Venha almoçar conosco!
Respondi que não queria incomodar, mas acabei aceitando pela curiosidade em descobrir mais sobre Didu que, aliás, não havia aparecido em minha sala pela manhã.
Entrei e a mulher de Odair acenou enquanto chamava os filhos para entrar. Sorri e lá fui eu entrando pela casa procurando em tudo o que via algo que pudesse me ajudar a entender um pouco mais sobre o mistério do cão.
Na parede da sala, entre muitos quadros com fotos antigas. Odair percebeu e comentou: - São fotos da minha família. Eu só não consegui encontrar uma foto dos meus pais quando eram jovens. A foto era linda e sei lá onde foi parar, um dia ainda eu vou encontrá-la...
Eu estava intensamente mergulhado nas imagens das fotos e só voltei à realidade quando ouvi a mulher de Odair nos chamar para a mesa. O jantar estava servido.
A lasanha estava deliciosa e a torta de limão, maravilhosamente imprudente para a minha atual tentativa de regime.
Agradeci o almoço e voltei para a fábrica, lembrando da foto do casal e tentando entender o porquê da vida ter colocado em meu caminho pessoas que normalmente jamais eu conheceria.
Marquei o ponto com quinze minutos de atraso e ouvi, ainda no corredor, a cobrança do Magalhães: - Você já confirmou o novo pedido da China? Não vá perder o prazo, hein? Temos as nossas metas e precisamos cumpri-las!
Sorri o sorriso mais amarelo que pude dar e voltei para os meus emails, depois de escovar os meus dentes e falar de futebol com o Edgard que estava desconsolado com o seu time que havia sido eliminado da Copa Libertadores.
Lá fui eu responder os meus mais de trezentos emails, sendo treze da China. Entre tantas perguntas que eu me fazia, a que menos importava era:
- Por que os chineses resolveram comprar tantos sapatos do nosso país? Será que estamos realmente a caminho do primeiro mundo?
O dia foi extremamente cansativo. Às seis da tarde fui embora e quase não notei que Didu não havia aparecido. Só fui me dar conta quando estava no ônibus e olhei para a porta da fábrica e não o vi.
Por onde andaria o meu amigo cão? Nesta hora me lembrei também de Ana e também me perguntei por onde ela andaria. Enquanto o ônibus seguia no trânsito eu questionava o porquê de perdermos o contato com tantas pessoas que conhecemos em nossa vida. Os amigos da infância, da juventude, a primeira namorada, os primos, enfim, por que precisamos perdê-los pelos caminhos que seguimos?
Seria a necessidade de buscar novas pessoas para conhecer também novas maneiras de ser? Será necessário mesmo ir apagando no quadro-negro de nossa vida os relacionamentos para escrever outros e mais outros?
Em contrapartida, alguma coisa fica das pessoas que conhecemos? Somos nós uma colcha de retalhos de experiências que tivemos com diversas pessoas? Eu me tornei um pouco daquele meu amigo que não vejo mais? E aquela namorada que tive? Ela existiria um pouco em Ana? E Ana? Existirá em uma mulher que ainda vou conhecer?
Alguém puxou a corda do ônibus na hora certa, porque seria muito provável que eu perderia o meu ponto se isso não tivesse acontecido, por causa das minhas divagações.
Desci e passei pelas muitas pessoas que estavam circulando naquele horário, também me perguntando se não deveria também conhecê-las para ampliar a minha visão de vida. Pensei até em gritar bem alto pedindo que todas me escutassem porque eu queria conhecê-las, saber mais sobre elas, mas acabei me calando.
Segui até o apartamento assobiando uma canção que eu não me lembrava mais o nome. Cumprimentei o porteiro e subi em silêncio no elevador ao lado de uma senhora com um cão. Olhei para ele e me perguntei: Eu podia ter simplificado a minha vida e ter simplesmente adotado um animal como você, não é mesmo, cãozinho?
Abri a porta, dei boa noite para a senhora e acenei para o cão. Ele me olhou, provavelmente, sem entender quem seria aquele que não fazia parte de sua matilha e que fizera aquele gesto para ele.
Capítulo 28 – A mesa
A fábrica estava a mil por hora, pois havia necessidade de recuperar os dias de greve. A produção estava intensa e o Magalhães agitadíssimo com a possibilidade da abertura de outro mercado para a venda dos calçados.
Neste dia fiquei até mais tarde para tentar cumprir a meta de confirmação dos novos pedidos e quando saí resolvi ir até a lanchonete.
Eu estava preocupado pelo fato de Didu não ter aparecido há cerca de três dias, mas não havia conseguido parar para ir procurá-lo no muro, onde ele costumava ficar quando não aparecia em minha sala.
A lanchonete estava superlotada e a alternativa foi esperar por uma mesa. Depois de alguns minutos a garçonete olhou para mim e para a moça que estava também esperando um lugar e disse:
-Vocês estão juntos? Vai desocupar a mesa ali no fundo... Eu olhei para a moça e fiz o mesmo sinal que ela me fez oferecendo a mesa. Foi inevitável, sorrimos e naqueles momentos interessantes onde os dois oferecem o lugar e ao mesmo tempo aceitam o oferecimento, demos os dois um passo à frente...
Meu braço roçou levemente o seu braço, sorrimos novamente e ela disse: Então vamos os dois para a mesa. Você se importa?
É claro que não, respondi. Então, vamos!
Ela foi à frente e notei que os seus cabelos claros eram longos e muito bonitos. Ela sentou-se e ao tirar o seu casaco, pude ver a blusa azul que realçava a sua pele clara.
A garçonete chegou e entregou o cardápio e lá fomos nós, dividindo também o cardápio para escolher o que queríamos. Ela fez o seu pedido, eu fiz o meu e por um minuto o silêncio tomou conta da mesa.
Ela “quebrou o gelo” perguntando: Você trabalha por aqui? Respondi que sim e devolvi a pergunta. Ela me disse: -Eu nunca desço neste ponto, mas como vi na vitrine de uma loja um vestido que chamou muito a minha atenção, resolvi descer.
Falamos de muitas coisas enquanto os lanches não chegavam. Meia hora depois caminhávamos pela Avenida Paulista e parecia que já nos conhecíamos há bastante tempo.
Chegamos enfim ao ponto de ônibus aonde iríamos cada um seguir o seu destino. Trocamos os nossos números de celulares e eu a vi desaparecer ao longo da Rua da Consolação no ônibus que seguia entre tantos outros.
A chuva começava a cair quando entrei no ônibus que me levaria de volta para o meu apartamento.
Capítulo 29 – O convite
Já estávamos em plena sexta-feira e quando Didu chegou a minha sala, eu nem lhe muita atenção. Às vezes estamos tão envolvidos com o trabalho que nos esquecemos de tudo o mais que nos cerca e assim fiz naquele dia.
Como sempre fazia, Didu deitou-se aos pés da minha cadeira, na sala onde eu trabalhava, mas confesso que até me esqueci que havia me preocupado com a sua ausência.
Apenas olhei para ele rapidamente e continuei no meu ritmo frenético de telefonemas e de responder os emails. Não saí nem para almoçar, pedi um lanche e assim foi o meu dia inteiro, apenas voltado para resolver os assuntos da fábrica.
Quando chegou a hora de ir embora, levantei-me, peguei a minha pasta e só fui notar que não havia nem olhado para trás para ver Didu quando estava no ônibus que descia a Rua da Consolação.
Não havia mais o que fazer, Didu que me desculpasse, mas é assim a vida. Todos nós temos muito o que fazer e os amigos que esperem pelo tempo que tivermos no futuro. Não era exatamente isso o que eu sentia, mas repeti o falso pensamento talvez para tentar me desculpar por ter praticamente ignorado o meu amigo cão.
Enquanto ônibus passava pela Igreja da Consolação, o meu celular tocou. Era Clara, aquela moça com a qual eu havia “dividido” a mesa na lanchonete.
Do outro lado, ela disse: -Olá, tudo bem com você? Você pode falar agora? Eu respondi que sim e ela continuou:
- O que você vai fazer hoje? Não quer ir ao cinema comigo?
Neste exato momento me lembrei de Ana. Será que já estaria na hora de esquecer a possibilidade de tê-la de novo comigo? Valeria à pena começar um novo relacionamento?
- Olá? Você está aí? O meu breve silêncio sugeriu que talvez a ligação pudesse ter caído. Falei então: - Estou aqui, sim! Acho que a ligação falhou... Vamos, sim! Onde você está agora, Clara?:
Ela respondeu: -Eu estou na Paulista. E você?
-Eu estou na Consolação, mas em quinze minutos acho que consigo chegar aí. Em que ponto da Paulista?
Meia hora depois, lá estávamos nós entrando em um cinema para assistir o filme que concorria ao Oscar.
Entramos e escolhemos um lugar que ficava bem na lateral direita da sala. Qual foi a minha surpresa quando vi Didu ao meu lado! Olhei para Clara, olhei para Didu e não sabia o que fazer!
Didu sentou-se aos meus pés e naquele momento eu queria é que ele fosse embora, pois apesar de saber que ninguém o via, achava que ali não seria o local para ele aparecer.
Agachei-me como se quisesse amarrar o meu tênis e disse para ele, sussurrando: - O que é que você está fazendo aqui, Didu? Você nunca sai da região da fábrica! Como é que veio parar aqui? O que eu vou fazer agora? Não vou conseguir assistir o filme e nem dar atenção à Clara com você aqui do meu lado!
Clara percebeu que eu estava demorando demais para amarrar o meu tênis e perguntou:
-Tudo bem aí? Alguma coisa em especial?
Disfarcei e me ajeitei na cadeira, sorri exatamente na hora que a luz se apagou apontando que a sessão iria começar.
O filme começou e foi inevitável o toque de minha mão nas mãos de Clara. Olhei para baixo e vi Didu que parecia sorrir. Sorri e me entreguei ao filme e aquele momento mágico.
Clara e Didu ao meu lado e na tela um filme que contava uma história de amor.
Capítulo 30 – A Casa
Depois de tanto tempo só pensando em Ana, eu parecia uma outra pessoa no dia seguinte. Ao deixar Clara na porta do edifício onde ela mora, ao vê-la acenar e sorrir, senti o meu coração pulsar mais forte e ao voltar para o meu apartamento eu ainda podia sentir a sua presença ao meu lado.
O estranho é que quando o filme terminou, eu percebi que Didu havia ido embora, sei lá para onde, mas o fato é que ele desaparecera, da mesma forma que aparecera, o que na verdade não era incomum.
Ao chegar à fábrica percebi que mais um prédio iria se erguer naquela rua, seria mais um dos tantos outros que estavam tomando conta dos espaços daquele bairro.
Qualquer dia destes, talvez, a fábrica teria que mudar a sua sede, pois o crescimento dos negócios quase que obrigaria a mudança, pois os pedidos de calçados que chegavam de todos os lugares do mundo já faziam a todos nós prever que isso aconteceria.
Antes de entrar pelo portão, resolvi ir até a lanchonete que ficava na esquina para tomar um café com leite. Estava muito frio naquela manhã e nesses momentos parece que o calor de uma bebida nos aquece tanto por dentro quanto por fora, fazendo-nos ter aquela boa sensação de aconchego, de proteção até.
Ao entrar, encontrei Odair, o filho do “seu” Alfredo e de Dona Estela, que tomava o seu café, pensativo e com uma expressão séria. Sentei-me ao seu lado e o cumprimentei. Ele sorriu, de forma até forçada e tomou mais um gole do seu café.
Tudo bem, perguntei? Ele me olhou, pensou por dez segundos e respondeu: - É... Está! Eu só estou sem saber o que fazer, pois a minha mulher quer que eu venda a casa para nos mudarmos para o interior, para ficar mais perto da sua mãe. Sabe, às vezes a gente não tem com quem deixar as crianças e quer passear um pouco, sair da rotina e não dá...
Insisti: E você? Está gostando da idéia? Odair olhou para mim e mais uma vez precisou de alguns segundos para responder: - Acho que é uma boa idéia, pois as crianças vão ter uma melhor qualidade de vida, o problema é que eu fico imaginando a possibilidade de vender a casa que era dos meus pais e isso me dói muito. Não sei se eles gostariam que estranhos viessem morar aqui.
Ao ouvir o que Odair dissera, me passou uma louca idéia pela cabeça: E se eu pudesse comprar essa casa? Há muito tempo a idéia de poder comprar algo que eu pudesse chamar de minha casa me atraía, porém talvez até por acomodação eu não havia tomado iniciativa para isso.
Respirei fundo e perguntei: -Já tem alguém interessado?
Odair respondeu que uma imobiliária já havia feito uma proposta e ele estava analisando. Alguma coisa dentro de mim naquele momento me disse que eu não poderia deixar passar essa oportunidade. Respirei fundo mais uma vez e falei: E para mim, você venderia a sua casa?
Odair sorriu uma vez, sorriu outra vez e disse: Claro! Você já me parece tão familiar que acho que meus pais gostariam de vê-lo morar lá em casa. A casa é grande! Você tem uma família?
Sorri e disse: Ainda não tenho, mas pretendo! Adoraria ter uma grande família e, com certeza, teria muito animais para “povoar” toda essa imensa casa! Um cachorro então, esse seria indispensável! Falei e pensei em Didu...
Não falamos em valores, pois eu precisava voltar para o meu trabalho. Combinamos de nos ver no dia seguinte, depois do meu horário na fábrica.
Ao responder cada um dos mais de duzentos emails que estavam na caixa de entrada do meu Outlook, eu não pensava em outra coisa, já me imaginava morando naquela casa e, talvez assim, conseguisse descobrir que mistério ela continha, o que Didu poderia querer tanto me mostrar...
Ao me imaginar neste futuro, me pareceu mais estranho ainda notar que eu não conseguia ver Ana ao meu lado nessa casa e sim, Clara. É interessante como certezas tão definitivas que temos, de repente, do nada, se tornam frágeis lembranças do passado. Seria isso uma coisa ruim ou poderia ser algo de bom?
Eu que sempre tivera a convicção de que Ana seria a minha única e definitiva paixão, já conseguia ver em Clara uma nova mulher para mim.
Ao sair da fábrica, no final do dia, passei em frente da casa que eu já imaginava minha e olhei para dentro. O vento frio batia em meu rosto e as folhas das árvores de dentro da casa balançavam como se fossem cair a qualquer momento. Dei meia volta e fui em direção ao ponto de ônibus, onde as pessoas estavam mais próximas umas das outras, como se fossem pinguins que ficam juntos para espantar o frio.
É uma pena que nós quase sempre não conseguimos aprender com os animais, o que é a força da união, pois vivemos cada vez mais distantes, como se pudéssemos construir as nossas vidas de forma independente, uns dos outros.
Eu pensava em tudo isso, quando o celular tocou. Era Clara querendo me ver e é claro que eu fui ao seu encontro, eu me sentia como um menino aos quinze anos experimentando a incrível sensação de se apaixonar pela menina que encontrara em uma festa junina.
Enquanto ia ao encontro de Clara, eu me perguntava: Onde estaria Didu? Desde o seu desaparecimento no cinema, eu não o vira mais.
Capítulo 31 – A negociação
O dia pareceu correr tão lentamente, pois o que eu mais esperava era o momento de, depois do trabalho na fábrica, ir até ao encontro de Odair para falarmos sobre a compra da casa.
É indescritível a sensação de esperar algo, já fazia bastante tempo que eu não passava por uma situação assim. A última vez tinha sido quando havia marcado um encontro com Ana, nos meus tempos de faculdade.
O mais estranho é que a imagem de Ana estava se dissipando em minha mente como se uma borracha a fosse apagando lentamente, desde que havia encontrado Clara.
Essa sensação me incomodava, pois eu sempre fui daquelas pessoas que acreditava que um amor é único e para sempre. Nos meus tempos de faculdade, tinha até receio de dizer o que eu pensava sobre isso, pois os amigos da época pareciam acreditar exatamente no contrário, que amor era uma coisa piegas, feita só para as mulheres.
Mesmo agora, depois de tanto tempo, vejo que, na verdade, eu não mudei a minha opinião quanto à eternidade de um amor, apenas descobrir que ele pode existir até para sempre, pelo menos em nossas lembranças e que isso não impede de um novo amor surgir e ter tanta força quanto o primeiro.
Às cinco da tarde, na hora que a fábrica fecha as suas atividades nos setores administrativos, sai da fábrica depois de marcar o meu ponto. Virei à esquerda e toquei a campainha na casa de Odair e foi exatamente nesse momento que senti a presença de Didu ao meu lado. Sim! Ele estava ali, como se tivesse surgido de um clic de uma antiga máquina fotográfica, pois as digitais não precisam mais de clics para nos avisar que a foto foi feita.
A imagem de Didu foi fundamental para que eu tivesse a certeza de que o negócio seria feito. Ele parecia até sorrir...
Odair também sorriu ao me ver e abriu o portão. Entrei e Didu me seguiu. A mulher de Odair me acenou da cozinha, enquanto preparava o jantar. Odair falou: -Janta conosco?
Balancei a cabeça afirmativamente perguntando: - Não vou incomodar? Odair sorriu mais uma vez e disse: -É bom porque você já vai se acostumando com a casa...
A negociação foi rápida, pois quando há boa vontade e intenção das partes fica tudo mais fácil. Valor acordado,era só uma questão de ir até o Banco negociar o financiamento.
Durante todo o tempo, Didu permaneceu ao meu lado e quando Odair e eu apertamos as mãos na conclusão da conversa, o cão roçou com a sua cabeça a minha perna esquerda. Eu ainda não entendia como um cão que ninguém vê, podia ser visto por mim e ainda mais, sentido e tocado.
As luzes da rua estavam mais acesas do que nunca quando saí ou pelo menos assim me pareceu. Enquanto caminhava pela calçada ao lado de Didu ainda sentia o gosto da deliciosa torta de limão servida ao final do jantar.
Eu entrava no ônibus e acenava para Didu quando o celular tocou. Era Clara. Eu queria contar para ela, mas me contive, pois ainda não era a hora. Marcamos para nos ver na Avenida Paulista, no bar próximo à famosa antena. A felicidade parecia estampada em meu rosto, pois todos nos ônibus pareciam simpáticos e felizes. Quando estamos em paz e alegres, o mundo parece também sorrir conosco, por isso talvez seja importante sempre sorrir, pois quem sabe possamos contribuir para que outros também sintam essa incrível e maravilhosa sensação de estar em paz com a gente mesmo.
Capítulo 32 – Na lanchonete
Clara estava maravilhosamente bonita naquela noite. Seus cabelos claros se confundiam com as paredes da lanchonete e seus olhos brilhavam mais do que nunca.
Segurei em suas mãos e as senti frias, afinal de contas, era mais um inverno em São Paulo, um daqueles que me faziam lembrar as histórias que meu pai me contava da época de quando havia vindo para cá, com os seus sonhos e planos na mente.
A cidade ainda tinha as famosas garoas que molhavam, sem que pudéssemos sentir, as nossas roupas. O restaurante onde ele costumava jantar ainda possuía aqueles bancos e as garçonetes que, sempre alegres, atendiam todos como se fossem de uma única família de clientes.
O dono do restaurante era um senhor que tinha sempre um sorriso nos lábios, aliás era comum ver as pessoas sorrindo e, por incrível que pareça, era possível voltar a pé das reuniões que aconteciam nas casas das colegas de escola nas noites de nevoeiro que a cidade vivia.
Meu pai me contava que em tantas ocasiões andava pelas ruas do bairro do Planalto Paulista, sem ver uma única pessoa, se sentindo como se estivesse em Londres, de tanta névoa que cobria as ruas. De vez em quando encontrava alguém, talvez um vigia que retornasse para a sua casa depois de uma noite de trabalho e o cumprimento os fazia cúmplices enquanto diziam boa noite um para o outro.
O garçom quebrou as minhas viagens pelo pensamento perguntando: - Vocês já escolheram?
Clara me olhou, eu olhei para ela e apontamos juntos para o cardápio o mesmo prato... O riso foi imediato e contagiou o garçom que anotou o pedido e saiu, com certeza pensando qualquer coisa como “o amor é lindo...”, como dizia aquele samba que havia sido tema da novela das nove.
Só deixamos de segurar nossas mãos quando o nosso pedido chegou e, assim mesmo, não nos deixamos de olhar durante todo o jantar.
Tudo estava tão bonito que eu tinha receio de que o despertador tocasse e me avisasse que era apenas um sonho. Não era, pois a conta trazida pelo garçom me trouxe à realidade e eu pensei comigo mesmo: -Preciso economizar, afinal de contas, estou comprando uma casa e, provavelmente, terei que trabalhar ainda mais para pagá-la.
Voltamos de ônibus, pois já havia um certo tempo que eu estava sem carro e não tinha planos de ter outro, pelo menos enquanto não conseguisse fazer as contas se seria possível ter, além da prestação da casa, outro gasto mensal. Ao me deitar, lembrei-me novamente de Ana e me perguntei: Onde ela estará? Rezei pedindo que estivesse bem e que pudesse encontrar alguém da mesma forma que eu havia encontrado Clara.
Capítulo 33 – Entre Duas Casas Amarelas
Na hora do almoço fui até o banco e tudo também foi muito rápido, pois se somando o fundo de garantia e mais o que eu havia conseguido guardar na poupança nos últimos anos, consegui o suficiente para o financiamento.
Depois de algumas semanas, tudo estava resolvido e a casa estava em meu nome. Odair me entregou as chaves de dentro do seu carro, já de malas prontas com a sua família para ir para o seu novo rumo.
Ele apenas me pediu que deixasse por mais alguns dias em um dos quartos, os muitos quadros de fotos de seus parentes que ele não havia conseguido levar, pois na semana seguinte ele voltaria para retirá-los.
Às cinco da tarde, depois de terminado o expediente na fábrica, parei do outro lado da calçada e fiquei olhando a casa que agora era minha, notando pela primeira vez, que ela ficava entre duas casas amarelas, pois na parte da frente da fábrica havia uma casa amarela que havia se transformado em recepção.
Era uma velha casa, mas que acabara tendo um significado muito especial para mim, pelo segredo que ela aparentemente possuía pela ligação de Didu com ela.
Fiquei por cerca de dez minutos observando-a e muitos pensamentos me tomaram a mente: - Como teria sido a vida daqueles que moraram nessa casa? Teriam sido felizes? Quais teriam sido os momentos mais alegres que ela teria presenciado? Alguns dos que moraram nessa casa, sonhavam em nela morar novamente? Estariam ainda por lá?
Alguns pingos da chuva que começava a cair me trouxeram à realidade e, deixando as divagações de lado, atravessei novamente a rua e girei pela primeira vez as chaves na porta da velha casa. Exatamente nesse momento percebi que Didu estava ao meu lado e parecia novamente sorrir para mim, mais do que todas as outras vezes.
Entrei e Didu passou à minha frente, andando pela casa como se quisesse reconhecer todo aquele espaço que eu acreditava que realmente já teria sido dele, um dia.
Em cada espaço, Didu parecia querer sentir ainda a presença de alguém ou de algo familiar. Era como se quisesse furar a barreira do tempo e encontrar, talvez, as pessoas que faziam parte da sua “matilha”, afinal de contas, os cães são assim, necessitam se sentir parte de uma matilha.
De repente, Didu saiu da casa e foi em direção ao muro que separava a casa da fábrica e começou a correr em círculos, como se quisesse encontrar algo.
Didu não parava de correr em círculos e isso foi me causando uma sensação de desconforto e até desespero. Chamei o seu nome, tentei segui-lo em sua corrida e não havia meio de conseguir que parasse! Gritei o seu nome várias vezes até que ele finalmente parou. Parou e me olhou como se quisesse me pedir algo, mas eu não conseguia descobrir o que poderia ser.
-O que foi, Didu? O que você está procurando? Eu sei que você não conseguirá me dizer, mas tente me mostrar, quem sabe eu consiga entender...
A chuva começou a ficar mais intensa e eu fiquei ali por mais algum tempo. Didu e eu ficamos deitados no jardim da casa, próximos ao muro como se procurássemos juntos, uma resposta para tudo.
Capítulo 34 – A ligação
A fábrica estava em plena produção, os emails haviam se multiplicado e os pedidos de calçados de todas as partes do mundo tornavam todos os funcionários mais tensos, porque não havia brecha para erros.
É interessante ver que quando uma empresa está em pleno êxito no mercado, ao invés de seus diretores tornarem o ambiente mais leve, acabam pressionando cada vez mais para que o sucesso venha maior ainda, esquecendo que pessoas são simplesmente pessoas e não são máquinas que ao se agregar mais tecnologia, elas produzem simplesmente, mais e mais...
Lá estava eu em minha mesa, respondendo os emails, confirmando os pedidos, quando o meu celular tocou. Do outro lado da linha uma voz falou:
- O senhor conhece Clara Hemengart? Respondi que sim e o tom da voz de quem me ligava me deixou extremamente preocupado.
- Ela sofreu um acidente e como o número do seu celular estava na últimas ligações, resolvemos ligar para saber se o senhor é parente dela.
Meu coração disparou e quase não consegui perguntar: - O que aconteceu? Ela está bem? Onde ela está?
O homem me explicou que era um policial e que um carro a havia atropelado. Consegui, com muito esforço, articular as palavras que me permitiram saber em que hospital ela estava.
Um táxi me levou até onde Clara recebia os cuidados necessários, ela estava em uma UTI do hospital já há horas. Os pais de Clara estavam morando em Buenos Aires e eu não conseguia avisá-los, pois os telefones não atendiam.
Na recepção do hospital eu aguardava notícias do seu estado de saúde quando apareceu ao meu lado, Didu. Ele tinha uma aparência triste, parecia saber do acontecido e, é claro sabia, pois qual seria a outra razão para ele aparecer ali no hospital, ao meu lado?
Foram horas e horas até que o médico me informou que o estado de Clara já era bem satisfatório e que em breve ela iria para o quarto, onde eu poderia vê-la.
Respirei aliviado e fui até a cantina do hospital para tomar um café. De repente, notei que Didu já não estava ao meu lado, simplesmente desaparecera.
Eu não deixei Clara sozinha nem por um minuto, pedi licença em meu trabalho e fiquei ao seu lado até que conseguisse se recuperar.
Foram sete dias até que ela tivesse alta e pudesse retornar à sua rotina normal. Voltei para o meu trabalho e a vida seguiu em frente.
Capítulo 35 - A Visita
Nos dias seguintes tentei ordenar os meus pensamentos, pois o acidente com Clara havia me abalado bastante.
Eu precisava também resolver o que fazer com a casa que havia comprado, aliás uma velha casa que eu havia adquirido por causa de um cão que somente eu conseguia ver.
Se eu contasse essa história para alguém, provavelmente diriam que eu não estava no pleno controle da minha mente, por isso, é claro, jamais havia falado de Didu para ninguém, a casa tinha sido apenas uma boa oportunidade que surgira para compra de um imóvel.
Na fábrica, uma boa parte dos meus colegas de trabalho já sabia da compra e todos até brincavam comigo dizendo que iriam almoçar todos os dias lá, quando eu estivesse morando. Eu sorria e concordava, dizendo: - Vou montar um restaurante lá e vocês vão me pagar todos os dias com o nosso vale-refeição...
É claro que eu não iria fazer da casa um restaurante, mas eu precisava fazer algumas reformas para que ela pudesse ter condição de moradia, o telhado já estava com infiltrações e as janelas não ofereciam segurança, pois eram de madeira e facilmente poderiam ser abertas, pois as trancas já estavam velhas e enferrujadas.
Depois de alguns dias, percebi que Didu não aparecia mais na fábrica, aparentemente ficava agora o tempo todo na casa e eu só o encontrava quando, depois do expediente na fábrica, eu ia para lá.
Com o passar dos dias, Didu foi ficando mais tranquilo e foi assim que eu o encontrei quando trouxe Clara para que ela conhecesse a casa. Abri a porta e dentro da minha cabeça, pensava: - Será que tenho coragem de contar para ela tudo o que havia me levado a comprar o imóvel?
Fiz um gesto e ela entrou. Logo percebi que Didu estava bem no meio da sala. O cão olhava para ela e para mim, como se quisesse me dizer algo. De repente, do nada ele foi ao encontro dela. Clara se agachou e, passando a mão na cabeça do cão, disse:
-Mas, que cachorro bonito! Você não me falou que tinha um cão! Eu tentei me controlar, pois a respiração estava ofegante. Ela me olhou e preocupada, falou:
-Você está bem? O que aconteceu? Enquanto ela falava, Didu me olhava e nada parecia se encaixar. Se as outras pessoas não viam Didu, como seria possível que Clara o visse?
Capítulo 36 – Os sonhos
Ficamos eu e Clara por um bom tempo andando pela casa. Didu nos acompanhava por onde íamos e eu não consegui contar para Clara que o cão não era visto pelas outras pessoas, pois tive receio que ela achasse que eu estava brincando ou ainda que não estivesse bem.
Ao sair, Clara me perguntou: E o cão, vai ficar aí sozinho?
A única resposta que me veio à mente foi: Ele era do antigo dono da casa que me pediu para que o deixasse ficar...
Clara insistiu: E ração? Você deixa para ele? E água?
Demorei um pouco para responder e disse: Fica lá no quintal da casa, nos fundos, já deixei o suficiente. Didu me olhou e eu devo ter ficado vermelho pela mentira, mas já era noite e ela não percebeu.
Fomos embora, eu e Clara de mãos dadas pela rua até o ponto de ônibus, que ainda tinha muita gente. Ela desceu antes, acenou e eu fiquei com os meus pensamentos que incomodavam bastante:
-O que teria acontecido para que Clara pudesse ver Didu? Eu me lembrava que em nosso primeiro encontro no cinema, Didu esteve ao nosso lado o tempo todo e ela não o vira! O que teria mudado? Didu apenas aparecia para quem ele quisesse ou quando ele quisesse?
Em meu apartamento fiquei imaginando o que estaria fazendo Didu naquela velha casa. Teria fome? Sentiria sede? E se Clara estivesse certa e ele realmente precisasse de ração e água, como qualquer cão?
As perguntas ficaram sem respostas porque o sono veio e foi me levando aos poucos para as estranhas e inseguras estradas dos sonhos, aliás eu sempre me perguntava porque os sonhos tanto nos envolvem.
Em algumas manhãs, eles parecem ainda nos incomodar como se tivéssemos feito uma viagem com a nossa alma por lugares que nem sempre conhecemos ou que não lembramos conhecer.
Sonhamos com vidas que não nos parecem ser nossas e a explicação seria que estaríamos recordando vidas antigas ou que tudo seria apenas obra da nossa mente que solta e leve durante os sonhos, se liberta de todas as repressões e nos faz agir de forma surpreendente ao sonhar.
Às vezes, os sonhos nos aliviam e possibilitam que encontremos as queridas pessoas que se foram e que parecem tão impossíveis de alcançarmos aqui na Terra.
Como nos faz bem abraçar e beijar ou pelo menos caminhar ao lado de quem amamos e que se foi, como nos aquece o coração falarmos com quem não mais podemos falar, ouvirmos a voz de quem partiu. Esses sonhos são como doces que vimos em nossa infância nas vitrines e não pudemos provar, são pedras leves e preciosas que queremos carregar para sempre em nossas noites.
Em contrapartida, alguns sonhos nos remetem ao horror de um filme aterrorizador, retratando tudo o que os nossos medos mais intensos nos provocam. São estes sonhos que nos fazem mais fortes, porque escapar deles e acordar de manhã nos mostra o quanto somos fortes para viver este plano de vida.
Enfim, são sonhos, e sonhos são simplesmente sonhos, não precisamos ter medo deles, temos apenas que aprender a conviver com eles, como aprendemos a conviver com pessoas que nos parecem ser tão diferentes de nós, como aprendemos a suportar o frio, a dor, a saudade e a indiferença.
Adormeci refletindo sobre os sonhos, acordei sem me lembrar deles, mas com certeza eles povoaram as minhas horas na madrugada e no início da manhã.
Capítulo 37 – O jantar
Eu havia combinado jantar com Clara, depois do trabalho e assim que terminou o expediente liguei para ela e marcamos nos encontrar na Estação Trianon do Metrô.
Ela estava mais linda do que nunca e no exato momento que a vi, tive a total convicção de que não imaginava a minha vida sem estar ao seu lado. Andamos pela Avenida Paulista até um restaurante, escolhemos uma mesa que ficava próxima a um belo quadro e ali ficamos, olhando um para o outro.
O garçom veio, fizemos o pedido e nossas mãos não conseguiam ficar distantes, queríamos sentir o toque dos nossos dedos e ver o brilho dos nossos olhares.
Conversamos e Clara me contou o que para ela parecia muito estranho, pois havia sonhado que durante o período em que esteve na UTI, um cão estava sempre ao seu lado e o cão era exatamente o Didu.
No momento que Clara me disse o que havia sonhado, consegui finalmente entender o porquê dela também conseguir ver o meu amigo Didu! Ele estivera realmente ao lado dela, sabe-se lá como durante todos aqueles momentos difíceis no hospital. Foi por isso que eu o encontrei, ele já estava lá quando eu cheguei e ele estava exatamente com ela!
O que eu não conseguia entender era a razão de tudo isso, o porquê de Didu ter aparecido em minha vida, o porquê dele apenas se deixar ver por mim e agora por Clara!
Clara queria saber o que eu pensava do seu sonho, mas se eu mesmo não sabia as respostas para tantas perguntas que eu mesmo me fazia, com certeza não saberia responder o que ela me questionava.
O prato que pedimos chegou na hora certa. O garçom nos serviu e o silêncio pareceu ter vindo para me ajudar, adiando a resposta que eu não saberia dar.
Depois do jantar, levei Clara até o seu apartamento e voltei para o meu. O silêncio que me ajudara anteriormente, agora fustigava a minha mente como se gritasse alto me pedindo que encontrasse a razão para tudo o que vinha acontecendo em minha vida.
Apaguei a luz e ajustei o celular para tocar no horário de sempre. Fechei os meus olhos na esperança de que um bom sonho me trouxesse uma manhã sem questionamentos, mesmo porque nem sempre precisamos de respostas imediatas, às vezes precisamos aprender que elas virão apenas com o tempo.
Capítulo 38 – O convite
O amor de Clara havia tornado diferente a minha vida. Agora eu era capaz de pensar em nós dois e não apenas em mim, logo eu que sempre fora tão exclusivista em minha vida, até um chocolate que antes eu comprava pensando no sabor que me agradava, agora eu já refletia sobre qual sabor agradaria a nós dois.
Os infinitos emails que eu tinha que responder todos os dias, pareciam agora uma tarefa tão simples, tão fácil! Lidar com os colegas de trabalho, alguns temperamentais, outros tão descompromissados com a sua postura no trabalho, tudo isso estava leve demais para mim.
Estar amando alguém nos dá esse poder, apesar de que às vezes não notamos essa força suplementar que nos oferece o amor. Se soubermos canalizar a nossa energia quando estamos apaixonados, teremos dentro de nós verdadeiros diamantes de luz, pães eternos que saciarão todas as nossas fomes e doces sucos que tornarão as nossas bocas completamente saciadas.
Às três da tarde, ao tomar o café com leite na lanchonete da esquina, o calor do leite e do café aquecendo o meu corpo, me ofereceu a certeza de que estava na hora de deixar o meu apartamento e me mudar para a velha casa que eu havia comprado.
Eu não faria a reforma que inicialmente pensara em fazer, apenas contrataria um serviço de limpeza e pintura da casa e me mudaria o quanto antes possível.
Procurei em meu celular o número de Clara e simplesmente ao ouvir ela dizer “alô”, falei:
-Você quer morar comigo na casa que eu comprei? Do outro lado da linha ouvi um suspiro e a resposta em seguida: -Sim!
Saí correndo pela calçada em direção à fábrica sem me importar se alguém me via e apenas diminuí o meu passo ao atravessar o portão da recepção. Cumprimentei o novo porteiro, o segurança e em passos largos cheguei até a minha sala e a minha alegria tornou-se maior ainda quando vi, deitado próximo à minha mesa, o meu amigo cão, o querido Didu.
O restante do dia pareceu passar tão rápido que quando o apito da fábrica soou, eu ainda fiquei por mais meia hora respondendo os emails, pois eu não queria deixar nada sem ser finalizado.
Às vezes, deixamos pelo meio tantas coisas que iniciamos, tantas idéias nascem e são abandonadas simplesmente porque não nos preocupamos de ir até o fim dos nossos objetivos. É comum deixarmos pelo meio da estrada tantos planos, mas eu estava decidido a não deixar de terminar o que começara a fazer, nem meus emails e nem meus sonhos. Eu descobrira que precisava concluí-los para ser feliz.
As luzes da cidade já estavam acesas quando marquei o meu ponto de saída na fábrica, as pessoas já se acotovelavam nos pontos de ônibus, os carros passavam e paravam nos faróis, os vendedores ambulantes já desmontavam suas barracas, os homens discutiam futebol nos bares e cães andavam com seus donos e donas pelas calçadas.
Sorri ao me lembrar de Didu que, para variar, desaparecera de uma hora para outra. Eu já estava acostumado com os sumiços de Didu, eu também havia aprendido que não é necessário prender ao nosso lado as pessoas que amamos, pois se as queremos bem de verdade, devemos aceitar que elas precisam ter a sua vida e, em muitos momentos, caminhem por outros que não são exatamente os mesmos nossos caminhos.
Capítulo 39 – A Mudança
A reforma da casa durou quinze dias e em mais uma semana, com alguns retoques, ela já estava pronta para a minha mudança e também para a de Clara que aceitara morar comigo.
Quando numa noite de terça-feira, depois do expediente na fábrica, eu vi chegar o caminhão de mudança que trouxera as nossas coisas, o meu coração bateu ainda mais forte ao ver os móveis entrando na casa.
Duas horas depois, estávamos na sala, eu e Clara, sentados no sofá, olhando tudo aquilo que ainda tínhamos que arrumar, quando Didu apareceu. Ele se aproximou e deitou-se aos nossos pés.
Dormimos abraçados enquanto tudo ao nosso redor estava completamente desarrumado, o que prova que quando estamos em paz, tudo ao nosso redor parece perfeito.
Acordei ainda abraçado à Clara, levantei-me da cama, tomei meu banho enquanto a água quente caía também na cafeteira transformando-a no café que tomaríamos em seguida.
Eu não precisaria mais acordar tão cedo, pois morava simplesmente ao lado do meu trabalho e ao olhar pela janela podia ver as pessoas passando pela rua apressadas na direção dos seus destinos.
Enquanto Clara tomava seu banho, fui até o quarto dos fundos onde estavam os quadros que Odair deixara e que ainda não tivera tempo de voltar a São Paulo para levá-los.
Eles estavam encostados uns nos outros, próximos da parede e me deu uma grande curiosidade de vê-los. Retirei-os um a um, com muito cuidado e olhei cada um deles.
De repente, um dos quadros escapou de minhas mãos e caiu, espatifando-se no chão! Atrás da foto que estava estampada, havia uma outra foto que caiu, voltada para o chão!
Fui me aproximando e quando a virei, senti meu coração como se fosse pular do meu peito, pois me lembrei da foto que Odair dissera que estava perdida e que era dos seus pais quando jovens!
Lá estava a tal foto em minha frente e era de um casal, os dois abraçados e ao lado deles, um cão...
O homem e a mulher da foto eram extremamente parecidos comigo e com Clara. O cão? Eu podia jurar que era Didu! Sim, sem dúvida nenhuma era ele!
Corri até o quintal e gritei: Didu! Didu! Ele não apareceu...
Neste momento, Clara saiu do banheiro e me chamou: - O que foi? O que aconteceu?
Eu voltei para dentro da casa segurando o quadro e mostrando para ela: Veja! Não se parecem conosco? E o cão? Não é o Didu?
Clara balançou a cabeça concordando e falou: -E o Didu onde está agora?
-Não sei, respondi. Ele costuma desaparecer de vez em quando, mas sei lá, o meu coração está dizendo algo, não sei dizer... Será que ele não vai voltar?
Exatamente nesse momento, ouvi o que me pareceu ser um choro ou algo parecido que vinha do portão. Saí e fui em direção ao som.
O Sol bateu em meus olhos e por um instante eu não consegui ver direito o que era, só após colocar minha mão me protegendo do brilho do sol é que pude perceber que era um filhote de cão que, de tão pequeno, havia passado entre as madeiras do portão e olhava para mim, como se estivesse sorrindo.
Quem passava pela calçada, do outro lado da rua, via um homem abraçando um cãozinho que parecia ter encontrado o seu eterno lar e os seus eternos donos naquela casa que ficava... Entre duas casas amarelas.
FIM